Allan Kardec |
A missão de Kardec
Paris, 1860, manhã fria de abril. Kardec, encontrava-se exausto, acabrunhado. Embora consolidada a Sociedade Espírita de Paris, faltavam recursos para a obra a executar, enquanto aumentavam as críticas e sarcasmos – conta Hilário Silva, por intermédio de Francisco C. Xavier, em O Espírito da Verdade, editado pela FEB.
Mergulhado em desalento, recebe das mãos de Madame Rivail, sua dedicada esposa, um embrulho que recentemente chegara. Continha uma carta singela, em que o remetente, manifestando sua gratidão, contava que, buscando o suicídio nas águas do Sena, em terrível crise de depressão, ao fixar a mão direita na amurada da Ponte Marie, alta madrugada, tocou em algo que, curiosamente, descobriu tratar-se de um livro.
À luz mortiça de um poste, deparou-se com O Livro dos Espíritos, em cujo frontispício pode ler: “Esta obra salvou-me a vida. Leia-a com atenção e tenha bom proveito. – A. Laurent”. Ao finalizar, informava que acrescentara uma nota, autorizando o mestre a fazer o uso que lhe aprouvesse. Kardec, então, desempacotou o exemplar da obra mandada, lendo logo no início a nota mencionada pelo missivista: “Salvou-me também. Deus abençõe as almas que cooperaram com sua publicação. Joseph Perrier”. Após a leitura, emocionado, sentiu-se banhado em nova luz. “Era preciso continuar, desculpar as injúrias, abraçar o sacrifício e desconhecer as pedradas (...)”
Levantou-se da velha poltrona, abriu a janela e contemplou os passantes: homens, mulheres, velhos e crianças, a representarem os necessitados que formam a Humanidade e que precisavam do seu esforço, de sua abnegação. O notável obreiro respirou profundamente, voltou à sua mesa e antes de pegar a caneta para o trabalho, “levou o lenço aos olhos e limpou uma lágrima (...)”
Todos os espíritas já ouviram falar de Kardec. Muitos leram e, até, se aprofundaram em sua obra, esse tesouro que a Humanidade ainda não descobriu. Muitos o admiram intelectualmente e não são poucos os que, atingidos pelas sombras da dor física ou do sofrimento psíquico, encontram no Espiritismo o lenitivo de que necessitam. Mas quantos, realmente, são gratos a esse Espírito notável? Aproximemo-nos do ser humano Hippolyte Rivail e, ao avaliar o tempo e as condições em que operou, certamente daremo-nos mais conta, ainda, de sua real estatura espiritual.
Vivendo na França de Napoleão III, numa época em que não havia luz elétrica (a lâmpada incandescente surgiria com Edison, em 1879), nem telefone (descoberto só em 1876, por Bell), rádio (Marconi nasceria só em 1874) ou telégrafo (só aperfeiçoado por Edison em 1869), e em que os únicos meios de transporte eram os veículos baseados na tração animal e experimentava-se, timidamente, o trem movido a vapor, com a preocupação de que sua “incrível” velocidade de cinqüenta quilômetros horários pudesse prejudicar a saúde; num tempo em que o criacionismo e o fixismo eram tidos por verdades, pois que a teoria da evolução (Darwin e Wallace), de 1859, só seria conhecida bem mais tarde, e em que a genética sequer era sonhada (os trabalhos de Mendel, publicados em 1865, só foram percebidos a partir de 1900-02); num período em que o mecanicismo imperava, soberano, e a Física apenas gatinhava (só em 1913 é que Niels Bohr publicou o seu modelo quântico do átomo) e, finalmente, em que o domínio da Igreja, apesar da Reforma, de Rousseau e dos movimentos liberalistas, apresentava-se forte e ostensivo, o gigante Rivail ousou enfrentar todas as resistências e trabalhar pela renovação da civilização.
E lá estava o mestre, acompanhado pelo carinho de sua companheira – sua “doce Gabi” –, madrugadas adentro, à luz de velas e tendo como instrumento uma pena primitiva, mergulhado numa incrível tarefa: mostrar ao mundo a verdadeira natureza espiritual, interexistencial e multiexistencial do ser humano, o seu processo de evolução, a realidade, enfim, da dimensão espiritual.
Sua genialidade, que transparece, já, na própria formulação das questões que compõem o monumental O Livro dos Espíritos, é presente em cada parágrafo de sua obra, construída ao longo dos quatorze anos de trabalho e renúncia. No Bicentenário de seu nascimento, prestemos, sim, unidos, a nossa homenagem ao mestre, pois, a Missão Kardec inaugurou a Era do Espírito, na Terra. Mas, acima de tudo, lembremo-nos do nosso grande amigo benfeitor Allan Kardec, com o coração.
Fonte: ABRAME
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