Djalma Argollo
Em seu novo lugar de morada, dizia-se, acontecera um fato inesperado: após se tornar discípula de um Galileu que iniciara uma nova seita, enlouquecera, havendo distribuído sua fortuna aos pobres, desaparecendo sem deixar maiores vestígios.
Sua frustração fora imensa, pois não conseguia esquecer o desejo de vingança. Mas, continuara procurando-a, através de emissários que percorriam a Galiléia, colhendo informações sobre o paradeiro dela.
Há um mês soubera que fora vista nos arredores de Magdala, na região de Dalmanuta, cuidando de crianças órfãs e pregando a vinda de um Reino de Deus. Problemas nas fronteiras com os Partas impediram-no de procurá-la imediatamente, como desejava. Agora, porém, surgira a ocasião, com a necessidade de ser levada uma mensagem urgente ao Procurador Pôncio Pilatos.
Enquanto atravessava velozmente Magdala, pondo em risco a vida de homens e animais, prelibava a vingança em detalhes de sadismo e crueldade. Logo após a cidade, dobraram à esquerda em direção à orla do lago de Genesaré, onde se localizava o sítio em que residiam Suzana e as crianças.
Entrando violentamente pelo portão da herdade, Flávio e seus soldados vararam o acesso até a entrada da casa, numa imprudência criminosa, pondo em risco a vida dos pequeninos, que trabalhavam, ou se divertiam, nos graciosamente simples jardins, à margem do caminho que conduzia à casa, arrancando-lhes gritos de susto. Antes que o cavalo parasse inteiramente, o moço romano, num salto que demonstrava toda sua destreza, desmontou e, no impulso da inércia, atravessou correndo a porta de entrada da residência, estacando no átrio em frente à jovem judia que, assustada com a algazarra das crianças, acorria para saber o que estava acontecendo.
O súbito aparecimento do romano fê-la parar, apreensiva, pois adivinhava os motivos que o levavam até ali, e exclamar:
– Marcelo!
– Surpresa, querida Suzana? Retrucou com ironia.
Fora melhor me haver assassinado, como fizeste com teu marido, pois os mortos não retornam para se vingar, a não ser nas tragédias gregas.
Uma gargalhada se seguiu à afirmação, enquanto a moça, ferida pelo cruel apontamento, se punha a chorar.
Ao seu redor, abraçadas umas às outras, as crianças choravam de medo.
Dirigindo-se aos petizes apavorados, o oficial prosseguiu impiedoso:
– Sabem que a protetora de vocês é uma criminosa sem entranhas? Uma prostituta ambiciosa que se vende por um punhado de moedas?
– Elas sabem de tudo a meu respeito – replicou a jovem, recobrando o ânimo – e são testemunhas diárias dos esforços que faço para me redimir dos erros cometidos.
– Quer dizer que Clitemnestra29, arrependida, busca se redimir da morte de Agamenon? – Exclamou o romano, irônico.
29 Clitemnestra, filha de Tíndaro e Leda, esposa de Agamenon, rei de Micenas e Argos. Assassinou – juntamente com seu amante Egisto – o esposo que regressava de Tróia, pelo fato dele haver sacrificado a filha de ambos, Ifigênia, aos deuses.
Ignorando a observação, Suzana continuou:
– Jesus de Nazaré, o Messias, ensinou-me que o Amor cobre a multidão de pecados 30, e, dedicando-me aos filhos do infortúnio, busco reparar meus desvios morais. O Mestre também me ensinou ser preciso fazer as pazes com os adversários, enquanto estamos a caminho com eles, assim, quero aproveitar esta oportunidade...
Pondo-se de joelhos, concluiu entre soluços:
– Sei que te magoei muito com minha irresponsabilidade, suplico-te, contudo, que me perdoes, por misericórdia.
Ante o gesto inesperado de humildade, o moço romano quedou estupefato por alguns momentos para, repentinamente, reagir com violenta bofetada que a lançou por terra, sangrando, com os lábios partidos. Em seguida, completamente desvairado, gritando impropérios e obscenidades, ordenou aos soldados que a violentassem ali mesmo, diante das crianças aterrorizadas, e depois a matassem com estocadas no baixo ventre.
Os soldados prepararam-se para cumprir a ordem cruel com a sádica alegria dos pervertidos, rasgando a roupa da infeliz mulher que, inutilmente, tentava resistir, enquanto clamava por compaixão.
Todavia, antes que consumassem a perfídia, soou no recinto uma voz:
– Basta!
A energia do comando fez com que os soldados largassem sua vítima, e se voltassem para ver quem falava.
No meio da sala, estava posicionado um homem alto, de compleição harmoniosa, cabelos castanhos, barba da mesma cor, olhos lúcidos, e tez amorenada por constante exposição ao sol. Irradiava tal autoridade que os romanos permaneceram estáticos algum tempo, enquanto as crianças e Suzana gritavam em uníssono:
30 Ágrafo citado por Clemente de Alexandria no Stromata. Ágrafo significa não escrito, e é o nome técnico de ditos atribuídos a Jesus, não encontrados nos quatro Evangelhos.
– Rabi!
Jesus aproximou-se da jovem hebréia e, retirando a capa, a envolveu, vestindo-lhe a nudez que ela, envergonhada e confusa, tentava inutilmente cobrir com pedaços das vestes rotas. Ajudando-a a levantar-se, manteve-a carinhosamente aconchegada ao peito, enquanto alisava-lhe os cabelos com ternura.
Vencendo com esforço o estupor que o possuíra, o centurião exclamou:
– Com que autoridade interferes nos assuntos de um oficial de Roma?
– Com a autoridade moral dos que cumprem a vontade de Deus, sobre os representantes da iniqüidade – respondeu o Mestre, fixando-o nos olhos.
Desembainhando o gládio, no que foi seguido pelos legionários, o moço inquiriu com ar irônico:
– Como pretendes nos impedir?
– Pelo poder da virtude, que ainda ignoras – retrucou o Rabi Galileu, sereno, prosseguindo firme. Ordeno-te, e a teus companheiros, que embainhes a espada e te retires deste lugar consagrado à Misericórdia do Pai.
Subjugados por uma força transcendente, Flávio e os soldados viram, estupefatos, suas próprias mãos colocarem as armas nas bainhas, enquanto eram impelidos, contra a vontade, em direção à saída.
– Não descansarei até te encontrar novamente, e então veremos quem dirá a última palavra – ousou blasonar o romano, ante o absurdo de sua situação.
No belo rosto do Cristo pousou um sorriso pleno de significado, quando ele respondeu a ameaça do impotente representante de César:
– Como disseste, assim será!
Ao tempo em que os militares, montando seus cavalos, desapareciam na estrada, o Messias, rodeado pelas crianças que extravasavam sua alegria, acariciava a face de Suzana e, enquanto lhe enxugava as lágrimas, fazia desaparecer, instantaneamente as marcas das agressões de que fora vítima.
Enquanto no Lar de Amor que a ex-sibarita construíra como manifestação viva de sua metanóia,31 Jesus sorria com a peraltice dos pequerruchos – brincando com elas como primus inter pares – Flávio Marcelo cavalgava alucinadamente rumo a Jerusalém. Em seu íntimo digladiavam-se dois sentimentos antagônicos: uma grande admiração pelo homem que o enfrentara e vencera, sem dúvida utilizando artes mágicas, pensava, e a frustração de não haver conseguido realizar a tão almejada vingança. Haveria, não obstante, uma outra vez, e aquele mágico conheceria a fúria de sua desforra. Chegando ao Quartel General, mobilizaria uma força mais numerosa, caçando-o por toda
Palestina e, quando o prendesse, fá-lo-ia torturar, impiedosamente, para que servisse de escarmento aos que tivessem veleidades de enfrentar a força e o poder de Roma.
No início da tarde entraram em Jerusalém pela porta de Damasco, rumando velozmente para a Torre Antônia, quartel da guarnição.
Após entregar as correspondências de que era portador ao comandante local, Flávio informou-o que havia encontrado um perigoso indivíduo na Galiléia o qual, se não fosse neutralizado imediatamente, poderia criar problemas à dominação romana.
– Então, outro galileu a causar transtorno – comentou o chefe da guarnição. Pilatos não vai gostar nada disso.
Prosseguindo, inquiriu:
– Diga-me, centurião, como se chama esse subversivo?
– Jesus de Nazaré.
31 Metanóia, palavra grega formada por Metà = além de, em meio de, com, depois de e Noéu = mente, pensar, inteligência. É geralmente traduzido dos evangelhos por arrependimento. Entretanto, as versões que melhor exprimem o seu significado são: “transformação da mente”, “mudança da visão de mundo” (Weltanschaung), “mudança de sentimento”.
O susto do comandante foi tão grande que o fez se levantar num ímpeto, atirando a cadeira para trás com violência.
– O que foi que disseste?
– Jesus de Nazaré – repetiu o militar, desconcertado com a reação do superior.
– E pode-se saber onde o encontraste? Reinquiriu o chefe rispidamente, com um olhar carregado de desconfiança.
– Em Dalmanuta, nas vizinhanças de Magdala – informou Marcelo, perplexo com a atitude hostil do General.
– Descreve o homem que alegas ter visto.
O soldado atendeu à ordem, completamente aturdido com a situação que se formara, intrigando-o o termo alegar, que o seu superior acentuara ostensivamente. Terminada a descrição, o comandante reagiu num tom onde transparecia a raiva contida:
– Não atino, no momento, com o propósito desta tua história, mas logo o descobrirei e haverás de te arrepender por pretender atrair sobre nós o ridículo e a zombaria.
Não é possível aceitar o conluio de um oficial romano, com os comparsas do falso Messias, nessa invencionice a respeito da ressurreição dele.
Atarantado, Flávio Marcelo perguntou:
– Com vossa permissão, senhor, que ressurreição?
Sobre o que o senhor está falando?
O comandante fitou-o por algum tempo, como se quisesse ler no seu íntimo, respondendo em seguida:
– Vou admitir, por enquanto, que nada sabes, não passando tudo de um terrível mal-entendido.
Após breve pausa, para alinhar as idéias, prosseguiu:
– Este homem que acabas de descrever, e dizer ter visto esta manhã em Dalmanuta, foi crucificado há mais de dez dias, aqui mesmo em Jerusalém, pelos meus soldados. Eu mesmo me certifiquei de que estava morto, antes de permitir que o descessem do madeiro, mandando perfurar, com uma lança, o seu tórax. Não posso permitir, pois, que saias por aí espalhando boatos que ponham em perigo minha autoridade e a integridade das tropas sob minha direção. Considera-te preso, não te sendo permitido comunicação com qualquer pessoa, enquanto perdurar o inquérito que mandarei levar a efeito, imediatamente, sobre esse fato. Os soldados que vieram contigo, também serão detidos e interrogados.
Se um raio o houvesse atingido, não seria maior a perplexidade do moço romano. Deixou-se levar para a prisão como um autômato, sem esboçar qualquer reação.
Enquanto isso, o general dava início às averiguações, inquirindo separadamente os soldados que vieram com ele, os quais confirmaram-lhe a história, sem qualquer contradição.
Extraído do livro Encontro com Jesus, de Djalma Argollo.
Djalma Motta Argollo nasceu na cidade do Salvador, Estado da Bahia. É Bacharel em Ciências Estatísticas. Tem curso de Analista em Processamento de Dados e Terapia Junguiana.
Atualmente, aposentado como Analista de Processamento de Dados pela PRODEB – Cia de Processamento de Dados do Estado da Bahia. Pós-graduando em Análise Junguiana.
É terapeuta Junguiano, exercendo esta atividade na Clínica Psiquê, em Salvador, BA. É espírita desde março de 1958, quando começou a freqüentar a Juventude Espírita Manoel Miranda, da União Espírita da Bahia. Desde 1959 exerce atividades mediúnicas de psicofonia, vidência e inspiração.
Como escritor, Djalma tem dezessete livros publicados – alguns com várias edições, inclusive duas traduções do grego, comentadas à luz da Doutrina Espírita: O Sermão do Monte e O Evangelho conforme Mateus. Esses livros, atualmente, estão doados ad perpetuum a instituições espíritas.
Visite o website: www.larharmonia.org.br
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