Mesquita do Sultão |
Uma Noite Esquecida
I
Havia em Bagdá uma mulher do tempo de Aladim; é a sua história que vou narrar:
Num dos subúrbios de Bagdá, não longe do palácio da sultana Sheherazad, morava uma velha mulher chamada Manouza. Feiticeira das mais apavorantes, essa velha era motivo de terror em toda a cidade. À noite passavam-se em sua casa coisas tão assustadoras que, mal se punha o sol, ninguém se aventurava a passar por ali, a não ser algum homem apaixonado, à procura de um filtro para sua amante rebelde, ou uma mulher abandonada, em busca de um bálsamo para pôr na ferida que o amante, ao
desampará-la, lhe havia provocado.
Certo dia em que o sultão estava mais triste que de costume e a cidade se achava em grande desolação porque queria mandar matar a sultana favorita e que, por seu exemplo, todos os homens eram infiéis, um jovem deixou a sua magnífica habitação, situada ao lado do palácio da sultana. Esse jovem usava uma túnica e um turbante de cores sombrias; mas sob essas simples vestimentas havia um grande ar de distinção. Procurava ocultar-se ao longo das casas, como se fora um amante que temesse ser surpreendido.
Dirigia-se para os lados da casa de Manouza, a feiticeira. Uma viva
ansiedade estampava-se em seu rosto, denunciando a preocupação que o agitava. Atravessou as ruas e praças rapidamente, porém usando de grande precaução.
Chegando à porta, hesitou por alguns minutos, decidindo-se depois a bater. Durante um quarto de hora padeceu angústias mortais, porque ouvia ruídos que nenhum ouvido humano até então havia escutado; uma matilha de cães uivava com ferocidade, gritos lamentosos faziam-se ecoar e se percebiam
gemidos de homens e mulheres, como sói acontecer no fim de uma orgia; e, para iluminar todo esse tumulto, luzes correndo de cima a baixo da casa, fogos fátuos de todas as cores. Depois, como que por encanto, tudo cessou: as luzes se apagaram e abriu-se a porta.
II
O visitante ficou confuso por alguns instantes, sem saber se devia entrar no corredor escuro que surgia à sua vista.
Por fim, armando-se de coragem, penetrou audaciosamente. Depois de haver caminhado às cegas o espaço de trinta passos, encontrou-se diante de uma porta que abria para uma sala, iluminada apenas por uma lâmpada de cobre de três bicos, suspensa do centro do teto.
A casa que, conforme o barulho ouvido da rua, deveria ser muito habitada, tinha agora um ar deserto; a sala, imensa, e que por sua construção devia ser a base do edifício, estava vazia, se excetuarmos os animais empalhados de todo tipo que a guarneciam.
No meio dessa sala havia uma pequena mesa coberta de livros de magia e, à sua frente, numa grande poltrona, estava assentada uma velhinha de apenas dois côvados, e de tal maneira agasalhada com xales e turbantes que era impossível divisar seus traços. À aproximação do estranho ela levantou a cabeça e lhe mostrou o mais terrível rosto que se possa imaginar.
“Eis que estás aqui, Sr. Noureddin, disse ela, fixando os olhos de hiena no rapaz que entrava; aproxima-te! Faz vários dias que meu crocodilo de olhos de rubi anunciou-me tua visita.
Dize se é de um filtro que precisas, ou de fortuna. Mas, que digo eu, fortuna! A tua não faz inveja ao próprio sultão? Não és o mais rico, assim como és o mais belo? Provavelmente é um filtro que vens procurar. Qual é, pois, a mulher que tem a ousadia de ser cruel contigo? Enfim, nada devo dizer; nada sei; estou pronta a ouvir-te as dificuldades e a te dar os remédios necessários, desde, naturalmente, que minha ciência tenha o poder de te ser útil. Mas por que me olhas assim e não avanças? Estarias com medo? Tal
como me vês eu te amedronto, por acaso? Outrora fui bela; mais bela que todas as mulheres existentes em Bagdá; foram os desgostos que me tornaram tão feia assim. Mas que te importam os meus sofrimentos? Aproxima-te: eu te escuto; apenas não te posso conceder mais que dez minutos; apressa-te, portanto.”
Noureddin não estava muito tranqüilo; entretanto, porque não quisesse mostrar à velha a perturbação que o agitava, avançou e lhe disse: “Mulher, venho aqui por uma coisa grave; de tua resposta depende a sorte de minha vida; vais decidir da minha felicidade e da minha morte. Eis do que se trata:
“O sultão quer mandar matar Nazara; eu a amo; vou contar-te de onde vem esse amor e te pedir me tragas um remédio, não à minha dor, mas à sua infeliz situação, porquanto não desejo que ela morra. Sabes que meu palácio é vizinho ao do sultão; nossos jardins se tocam. Há cerca de seis semanas, passeando à noite em meus jardins, ouvi uma música encantadora, acompanhada da mais deliciosa voz de mulher que jamais ouvira. Querendo saber de onde vinha, aproximei-me dos jardins vizinhos e percebi que se originava de um caramanchão de verdura, habitado pela sultana favorita.
Fiquei vários dias absorvido por esses sons melodiosos; sonhava noite e dia com a bela desconhecida, cuja voz me havia seduzido, porque, é preciso que te diga, no meu pensamento só podia ser bela. Todas as noites eu passeava nas mesmas aléias onde tinha ouvido aquela maravilhosa harmonia. Durante cinco dias foi em vão; finalmente, no sexto dia a música fez-se ouvir novamente; não mais me podendo conter, aproximei-me do muro e vi que era preciso despender pouco esforço para o escalar.
“Após alguns momentos de hesitação, tomei uma grande decisão: passei do meu para o jardim vizinho; ali percebi não uma mulher, mas uma huri, a huri favorita de Maomé, uma maravilha, enfim! À minha vista ela se assustou um pouco mas, lançando-me a seus pés, supliquei que não tivesse nenhum receio e me ouvisse; disse-lhe que seu canto me havia atraído e garanti-lhe que em minhas atitudes não encontraria senão o mais profundo respeito; ela teve a bondade de me ouvir.
“Passamos a primeira noite a falar de música. Também cantei e ofereci-me para acompanhá-la; ela consentiu, e marcamos encontro para o dia seguinte, à mesma hora. Naquele momento estava mais tranqüila; o sultão estava em seu conselho e a vigilância era menor. As duas ou três primeiras noites se passaram inteiramente com música; mas a música é a voz dos amantes e, a
partir da quarta noite, não éramos mais estranhos um a outro: nós nos amávamos. Como era bela! Como sua alma também o era!
Planejamos a fuga diversas vezes. Ah! por que não a realizamos?
Eu seria menos infeliz e ela não estaria prestes a sucumbir. Essa bela flor não estaria a ponto de ser colhida pela foice que vai arrebatá-la à luz.
(Continua no próximo número.)
ALLAN KARDEC
R E V I S T A E S P Í R I T A
N O V E M B R O D E 1 8 5 8
Ditada pelo Espírito de Frédéric Soulié.
PÁGINAS 479 a 482
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