domingo, 3 de julho de 2016

SUBLIME RENOVAÇÃO

 

Conta-se que Tiago, filho de Alfeu, o discípulo de Jesus extremamente ligado à Lei Antiga, alguns meses depois da crucificação tomou-se de profunda saudade do Redentor e, suspirando por receber-lhe a visita divina, afastou-se dos companheiros de apostolado, demandando deleitoso retiro, nas adjacências de Nazaré.

Ele, que pretendia conciliar os princípios do Cristo com os ensinamentos de Moisés, não tolerava os distúrbios da multidão.

Não seria mais justo – pensava – aguardar o Senhor na quietude do campo e na bênção da prece?

Porque misturar-se com os gentios irreverentes?

Simão e os demais cooperadores haviam permanecido em Jerusalém, confundindo-se com meretrizes e malfeitores.

Vira-lhes o sacrifício em favor dos leprosos e dos loucos, das mães desditosas e das crianças abandonadas, mas não desconhecia que, entre os sofredores que os cercavam, surgiam oportunidades e ladrões.

Conhecera, de perto, os que iam orar em nome da Boa Nova, com o intuito de roubar e matar. Acompanhara o martírio de muitas jovens da família apostólica miseravelmente traídas por homens de má fé que lhes sufocavam os sonhos, copiando textos do Evangelho renovador. Observara bocas numerosas glorificando o Santo Nome para, em seguida, extorquirem dinheiro aos necessitados, sem que ninguém lhes punisse a desfaçatez.

Na grande casa em que se propunha continuar a obra do Cristo, entravam alimentos condenados e pipas de vinho com que se intoxicavam doentes, tanto quanto bêbados e vagabundos que fomentavam a balbúrdia e a perturbação.

Desgostoso, queixara-se a Pedro, mas o rijo pescador que lutava na chefia do santuário nascente rogara-lhe serenidade e abnegação.

Poderia, contudo, sustentar excessos de tolerância, quando o Senhor lhes recomendara pureza? Em razão disso, crendo guardar-se isento da corrupção, abandonara a grande cidade e confinara-se em ninho agreste na deliciosa planura que se eleva acima do burgo alegre em que Jesus passou a infância.

Ali, contemplando a paisagem que se desdobra em perspectiva surpreendente, consolava-se com a visão dos lugares santos a lhe recordarem as tradições patriarcais.

Diante dele destacavam-se as linhas notáveis do Carmelo, as montanhas do país de Siquém, o monte Gelboé e a figura dominante do Tabor...

Tiago, habituado ao jejum, comprazia-se em prece constante.

Envergando a veste limpa, erguia-se de leito alpestre, cada dia, para meditar as revelações divinas e louvar o Celeste Orientador, aguardando-Lhe a vinda.

Extasiava-se, ouvindo as aves canoras que lhe secundavam as orações, e acariciava, contente, as flores silvestres que lhe balsamizavam o calmoso refúgio.

Por mais de duzentos dias demorava-se em semelhante adoração, ansiando ouvir o Salvador, quando, em certo crepúsculo doce e longo, reparou que um ponto minúsculo crescia, em pleno céu.

De joelhos, interrompeu a oração e acompanhou a pequenina esfera luminosa, até que a viu transformada na figura de um homem, que avançava em sua direção...

Daí a minutos, mal sopitando a emotividade, reconheceu-se à frente do Mestre.

Oh! era Ele! A mesma túnica simples, os mesmos cabelos fartos a se Lhe derramarem nos ombros, o mesmo semblante marcado de amor e melancolia...

Tiago esperou, mas Jesus, como se lhe não assinalasse a presença, caminhou adiante, deixando-o à retaguarda...

O discípulo solitário não suportou semelhante silêncio e, erguendo-se, presto, correu até o Divino Amigo e interpelou-o:

- Senhor, Senhor! aonde vais?

O Messias voltou-se e respondeu, generoso:

- Devo estar ainda hoje em Jerusalém, onde os nossos companheiros necessitam de meu concurso para o trabalho...

- E eu, Mestre? – perguntou o apóstolo, aflito – acaso não precisarei de Ti no carinho que Te consagro à memória?

- Tiago – disse Jesus, abençoando-o com o olhar -, o soldado que se retira deliberadamente do combate não precisa do suprimento indispensável à extensão da luta... Deixei aos meus discípulos os infortunados da Terra como herança. O Evangelho é a construção sublime da alegria e do amor... E enquanto houver no mundo um só coração desfalecente, o descanso ser-me-á de todo impraticável...

- Mas, Senhor, disseste que devíamos conservar a elevação e a pureza.

- Sim – tornou o Excelso Amigo -, e não te recrimino por guardá-las. Devo apenas dizer-te que é fácil ser santo, à distância dos pecadores.

- Não nos classificaste também como sendo a luz do mundo?

O Visitante Divino sorriu triste e falou:

 

- Entretanto, onde estará o mérito da luz que foge da sombra? Nas trevas da crueldade e da calúnia, da mistificação e da ignorância, do sofrimento e do crime, acenderemos a Glória de Deus, na exaltação do Bem Eterno.

Tiago desejaria continuar a sublime conversação, mas a voz extinguiu-se-lhe na garganta, asfixiada de lágrimas; e como quem tinha pressa de chegar ao destino, Jesus afastou-se, após afogar-lhe o rosto em pranto.

Na mesma noite, porém, o apóstolo renovado desceu para Nazaré e, durante longas horas, avançou devagar para Jerusalém, parando aqui e ali para essa ou aquela tarefa de caridade e de reconforto. E na ensolarada manhã do sétimo dia da jornada de volta, quando Simão Pedro veio à sala modesta de socorro aos enfermos encontrou Tiago, filho de Alfeu, debruçado sobre velha bacia de barro, lavando um feridento e conversando, bondoso, ao pé dos infelizes.

 

Irmão X

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