quinta-feira, 8 de julho de 2010

SEM BRAÇOS E SEM PERNAS


SEM BRAÇOS E SEM PERNAS
Em uma das orações que os católicos rezam, chamam a este mundo vale de lágrimas, e creio que é a melhor definição que se pode fazer desta penitenciária do Universo, porque, na realidade, não existe um único ser que possa vangloriar-se de dizer: -"Sou feliz em toda acepção da palavra".





A maioria dos potentados geralmente sofre enfermidades incuráveis; existem milionários nos Estados Unidos que só podem alimentar-se com copos de leite e em pequenas quantidades; outros não podem dormir porque se afogam, e têm milhões de renda que não lhes proporciona nenhum gozo; e, quanto aos mais pobres, se alguns são fortes e robustos, carecem do mais indispensável para manter suas forças vitais, e os vemos decair como lâmpada que se apaga no melhor de sua juventude.



Por conseguinte, a felicidade é uma nuvem de fumo que se desfaz ao menor sopro de vento no furacão da vida, como se desfaz a névoa aos primeiros raios do sol. Mas, em meio a tantas dores, as há de diferentes graus: as suportáveis e as irresistíveis. Conversando há poucos dias com uma amiga, ela me disse o seguinte:



- Faz algum tempo, fui a um balneário e ali encontrei uma família que nunca esquecerei. Era um casal, os dois jovens, amáveis e simpáticos, seus semblantes irradiavam alegria; os dois se amavam com esse primeiro amor que se assemelha a uma árvore florida que espera ser, mais tarde, formoso celeiro de sazonados frutos.



Uniram-se por amor, unicamente por amor. Ele era um modestíssimo empregado, ela uma humilde costureira. Viram-se e se amaram, amaram-se e se uniram e ao unir-se, ao receber a bênção, ele pensou na chegada do primeiro filho e ela, contemplando a um menino Jesus, pediu a Deus ter um filho tão formoso como aquela figura angelical.



Um ano depois, o amoroso par sentiu-se dominado pela mais viva e amorosa ansiedade; à força de economias, haviam comprado todo o necessário para vestir um recém-nascido: camisinhas de cambraia com preciosas rendas, vestidinhos brancos com finos bordados, gorrinhos lindíssimos, tudo do mais belo, tudo do mais delicado lhes parecia pouco para o bebê que deveria chegar pedindo beijos com seus sorrisos.



Enfim, chegou o momento supremo. Áurea sentiu as agudas dores precursoras do laborioso parto e deu à luz um menino; quis vê-lo imediatamente, e seu esposo e as pessoas que a rodeavam, melancólicos e calados, pareciam que não a compreendiam; olhavam-se uns aos outros e cochichavam, até que Áurea gritou alarmadíssima:



— Mas não me escutam? Quero abraçar meu filho... Está morto, talvez?



— Não, respondeu o marido, mas...



— Mas o quê? Que acontece?



— O menino não tem braços... Nem pernas!



— Assim estará mais tempo em meus braços, respondeu Áurea, abraçando seu filho com delirante ansiedade.



O menino era lindo, branco como a neve, com olhos azuis, cabelos louros muito abundantes e grandes tinham um olhar muito expressivo; quando eu o conheci, o menino tinha oito ou dez meses, e estava formosíssimo. Sua mãe era louca por ele e seu pai também; mas este último, quando sua esposa não podia ouvir com profunda amargura!... - Que injusto é Deus!... Se meu filho fosse rico, mas eu sou tão pobre....



Creia-me, Amália, aquele menino vive em minha memória. Que terá sido? Que papel terá representado na história? — Eu o perguntarei, minha amiga, porque teu relato me impressionou muitíssimo e, efetivamente, de noite ou de dia penso neste menino que tanto homem sem ter braços e pernas! ..



— Que horror! E provavelmente será um ser de grande inteligência, quererá voar com o pensamento e não terá mais remédio que permanecer na mais dolorosa inanição. Deus meu! . . Não é vã curiosidade que me guia, mas desejo de saber, se for possível o porquê de tão horrível expiação.



"Pelo fruto conhecereis a árvore", disse Jesus, por conseguinte, a todo ser que vejais carregados de cadeias desde o momento de nascer, podeis deduzir, sem a menor dúvida, que de tudo que lhe falta, fez mau uso nas encarnações anteriores. Não tem pernas? Sinal de que, quando as teve, lhe serviram para fazer todo mal que pôde; talvez foi um espião que correu ansioso, atrás de alguns infelizes para acusá-los de crimes que não cometeram e, com suas declarações, fez abortar transcendentais conspirações que, descobertas antes do tempo, produziram inúmeras vítimas.



Talvez correu para precipitar em um abismo seres indefesos que o estorvaram para executar seus iníquos planos. Ao que faltam as pernas, tem que havê-las empregado para atormentar seus inimigos, tem que ter sido o açoite de quantos o rodeavam. Carecer de membros tão necessários põe de manifesto uma crueldade sem limites, um deleite em fazer o mal, impossível de descrever, uns instintos tão perversos, que atestam o prazer de fazer o mal pelo mal mesmo. Ai daquele que nasce sem pernas!



Não tem braços? Quem sabe se suas mãos tão úteis que são à espécie humana, para com elas fazer obras de titãs e labores delicadíssimos, as empregou para firmar sentenças de morte que levaram ao patíbulo inúmeras vítimas, inocentes em sua maioria. Talvez gozou apertando os parafusos de horríveis potros de tormento, arrancando confissões dos infelizes acusados, loucos de dor; quem sabe se escreveu horríveis calúnias que destruíram a tranqüilidade e o carinho de famílias felizes!



Pode-se fazer tanto mal com as mãos!... Com elas chega-se a mecha às matérias inflamáveis e se produz o incêndio devorador; com elas o forte estrangula o débil, com elas se esbofeteia e se converte em fera o homem, que com suas mãos produz maravilhas ou aniquila quanto existe. Quando “se vem à Terra sem mãos, quanto dano se fez com elas”.



"Não há necessidade de particularizar a história deste nem daquele; todos os que ingressam na Terra sem um corpo robusto e bem equilibrado, safo penitentes, condenados à cadeia perpétua, que vêm cumprir sua condenação, pois não há apelação da sentença que cada um firma no transcurso da vida.



Não há juízes implacáveis que neguem indulto aos arrependidos criminosos, não há outro juiz que a consciência do homem; poderá este embriagar-se com fáceis triunfos de seus delitos; poderá não ter ouvidos para escutar as maldições de suas vítimas; poderá cerrar os olhos para não ver os quadros de desolação que produziu; poderá estacionar milhões de séculos, mas chega um dia, que, não obstante todas as resistências, despertará e então, vê, ouve, reconhece sua pequenez e ele mesmo se chama ao seu juízo e pronuncia sua sentença, sentença inapelável, sentença que se cumpre hora por hora, dia por dia, sem que se exima ao tormento nem um segundo, porque tudo está sujeito a leis fixas e imutáveis."



"Não duvideis: os criminosos de ontem são os tolhidos de hoje, os cegos, os mudos, os idiotas, os que não têm pernas, os que não têm mãos, os que padecem fome e sede e são perseguidos pela justiça." "Tendes um refrão que diz: "Não te fies no aleijado pela mão de Deus"; a idéia está muito mal expressada, mas no fundo tem uma grande verdade. Se bem olhardes vereis que a maioria desses irmãos, menos felizes, revelam em seu semblante a degradação de seu Espírito; a mão de Deus não imprimiu a ferocidade em seu rosto; é o acúmulo de seus delitos, são seus maus e perversos instintos os que endureceram as linhas de seu rosto.



Por esses pobres guardai toda a vossa compaixão, guiai-os pelo melhor caminho, fazei por eles quanto faríeis por vossos filhos, porque são mais necessitados, mais aflitos, porque em meio da maior abundância não há, para eles, água na fonte, trigo nos campos, frutos nas árvores, calor no lar. São os judeus errantes da lenda, andam sempre sem encontrar uma pedra onde sentar-se. Que mau é ser mau! “Adeus.”



Como disse bem o Espírito! Se pelo fruto se conhece a árvore, que mau é ser mau!







Amália D. Soler



Foto: De Amália Domingo Soler nasceu na cidade de Sevilha, na região da Andaluzia, Espanha. Sua cidade natal, cujo simbolo é a "Torre da Giralda", antigo minarete mouro transformado em campanário (com um ornamento em seu topo que gira com o vento: La Giralda), tem brilhante participação na história da Espanha e do Ocidente.







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