terça-feira, 25 de agosto de 2015



Tragédia no Circo

Naquela noite, da época recuada de 177, o “concilium” de Lião regurgitava de povo.


Não se tratava de nenhuma das assembléias tradicionais da Gália, junto ao altar do Imperador, e sim de compacto ajuntamento.

Marco Aurélio reinava, piedoso, e. Embora não houvesse lavrado qualquer rescrito em prejuízo maior dos cristãos, permitira se aplicassem na cidade, com o máximo rigor, todas as leis existentes contra eles.


A matança, por isso, perdurava, terrível.


Ninguém examinava necessidades ou condições. Mulheres e crianças, velhos e doente, tanto quanto homens válidos e personalidades prestigiosas, que se declarassem fiéis ao Nazareno, eram detidos, torturados e eliminados sumariamente.

Através do espesso casario, a montante da confluência do Ródano e do Saône, multiplicavam-se prisões, e no sopé da encosta, mais tarde conhecida como colina de Fourviére, improvisara-se grande circo, levantando-se altas paliçadas em torno de enorme arena.


As pessoas representativas do mundo lionês eram sacrificadas no lar ou barbaramente espancadas no campo, enviando-se os desfavorecidos da fortuna, inclusive grande massa de escravos, ao regozijo público.


As feras pareciam agora entorpecidas, após massacrarem milhares de vítimas, nas mandíbulas sanguinolentas. Em razão disso, inventavam-se tormentos novos.


Verdugos inconscientes ideavam estranhos suplícios.


Senhoras cultas e meninas ingênuas eram desrespeitadas antes que lhes decepassem a cabeça, anciães indefesos viam-se chicoteados até a morte. Meninos apartados do reduto familiar eram vendidos a mercadores em trânsito, para servirem de alimárias domésticas em províncias distantes, e nobres senhores tombavam assassinados nas próprias vinhas.


Mais de vinte mil pessoas já haviam sido mortas.


Naquela noite, a que acima nos referimos, anunciou-se para o dia seguinte a chegada de Lúcio Galo, famoso cabo de guerra, que desfrutava atenções especiais do Imperador por se haver distinguido contra a usurpação do general Avídio Cássio, e que se inclinava agora a merecido repouso.

Imaginaram-se, para logo, comemorações a caráter.


Por esse motivo, enquanto lá fora se acotovelavam gladiadores e jograis, o patrício Álcio Plancus, que se dizia descendente do fundador da cidade, presidia a reunião, a pedido do Propretor, programando os festejos.


- Além das saudações, diante dos carros que chegarão de Viena – dizia, algo tocado pelo vinho abundante -, é preciso que o circo nos dê alguma cena de exceção... O lutador Setímio poderia arregimentar os melhores homens; contudo, não bastaria renovar o quadro de atletas...


- A equipe de dançarinas nunca esteve melhor – aventou Caio Marcelino, antigo legionário da Bretanha que se enriquecera no saque.


- Sim, sim... – concordou Álcio –instruiremos Musônia para que os bailados permaneçam à altura...


- Providenciaremos um encontro de auroques – lembrou Pérsio Níger.


- Auroques! Auroques!... – clamou a turba em aprovação.


- Excelente lembrança! – falou Plancus em voz mais alta – mas, em consideração ao visitante, é imperioso acrescentar alguma novidade que Roma não conheça...


Um grito horrível nasceu da assembléia;


- Cristãos às feras! cristãos às feras!


Asserenado o vozerio, tornou o chefe do conselho:


- Isso não constitui novidade! E há circunstâncias desfavoráveis. Os leões recém-chegados da África estão preguiçosos...

Sorriu com malícia e chasqueou:


- Claro que surpreenderam, nos últimos dias, tentações e viandas que o própio Lúculo jamais encontrou no conforto de sua casa...


Depois das gargalhadas gerais, Álcio continuou, irônico:



- Ouvi, porém, alguns companheiros, ainda hoje, e apresentaremos um plano que espero resulte certo. Poderíamos reunir, nesta noite, aproximadamente mil crianças e mulheres cristãs, guardando-as nos cárceres... E, amanhã, coroando as homenagens, ajuntá-las-emos na arena, molhada de resinas e devidamente cercada de farpas embebidas em óleo, deixando apenas passagem estreita para a liberação das mais fortes. Depois de mostradas festivamente em público, incendiaremos toda a área, deitando sobre elas os velhos cavalos que já não sirvam aos nossos jogos... Realmente, as chamas e as patas dos animais formarão muitos lances inéditos...


- Muito bem! Muito bem! – reuniu a multidão, de ponta a ponta do átrio.


- Urge o tempo – gritou Plancus – e precisamos do concurso de todos... Não possuímos guardas suficientes.


E erguendo ainda mais o tom de voz:


- Levante a mão direita quem esteja disposto a cooperar.

Centenas de circunstantes, incluindo mulheres robustas, mostraram destra ao alto, aplaudindo em delírio.


Encorajado pelo entusiasmo geral, e desejando distribuir a tarefa com todos os voluntários, o dirigente da noite enunciou, sarcástico e inflexível:


- Cada um de nós traga um... Essas pragas jazem escondidas por toda a parte... Caçá-las e exterminá-las é o serviço da hora...

Durante a noite inteira, mais de mil pessoas, ávidas de crueldade, vasculharam residências humildes e, no dia subsequente, ao Sol vivo da tarde, largas filas de mulheres e criancinhas, em gritos e lágrimas, no fim de soberbo espetáculo, encontraram a morte, queimadas nas chamas alteadas ao sopro do vento, ou despedaçadas pelos cavalos em correria.


Quase dezoito séculos passaram sobre o tenebroso acontecimento... Entretanto, a justiça da Lei, através da reencarnação, reaproximou todos os responsáveis, que, em diversas posições de idade física, se reuniram de novo para dolorosa expiação, a 17 de dezembro de 1961, na cidade brasileira de Niterói, em comovedora tragédia num circo.

Irmão X

Do livro: Cartas de Crônicas, Médium: Francisco Cândido Xavier


A Casa do Caminho  ·  Estatísticas  ›  Visão geral


18/08/2015 15:00 – 25/08/2015 14:00

 

 

Visualizações de página de hoje
224

 

Visualizações de página de ontem
29

 

Visualizações de página do mês passado
1.247

 

Histórico de todas as visualizações de página
101.656

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário