PAPAI
RICO
Conheci
Cantídio Pereira em pleno fastígio econômico. Duas fazendas na gleba fluminense
e grande conjunto residencial em formosa praia do Rio. Gostava de carros e
viagens, diversões e aperitivos. Era, em suma, cavalheiro elegante e bem posto,
relacionando anedotas finas em cada conversacão.
Não
abraçava o grande amigo, desde muito tempo, quando fui reencontrá-lo,
justamente ali, em velha casa consagrada a problemas e assuntos de reencarnação.
Recolhi-o,
de encontro ao peito, com a felicidade de quem surpreende um irmão em país diferente,
e passamos a falar no mesmo idioma de carinho e recordação.
Ignorando-lhe
a mudança, da Terra para a Vida Espiritual, era natural me espantasse, não apenas
por revê-lo em pessoa, mas também ao verificar-lhe a aflitiva apresentação.
O
antigo “gentleman”, que envergava costumes de puro linho inglês nos repastos do
Leme, parecia desempenhar agora o papel de mendigo. Veste rota, desajeitada.
Amargura, desencanto, tristeza...
Foi
por isso, talvez, que as minhas primeiras indagações veladas respondeu sem
rebuços:
–
Não se admire, meu caro... Não é a morte que opera tamanha transformação. É a
própria vida que continua...
–
Mas você...
–
Não faca perguntas – falou bem humorado –, explicarei...
E
prosseguiu :
–
Você provavelmente ainda não sabe que voltei da Terra, há dois anos. Tempo
bastante para renovar-me em todas as dimensões, apesar de ter vivido por lá
mais de setenta. Imagine que meus quatro filhos eram meus quatro amores. Viúvo
desde a mocidade, concentrei neles a própria vida. João e Eduardo, Linda e
Eunice resumiam meus sonhos. Casados, continuaram a ser minha doce alegria.
Além disso, povoaram-me a velhice com quatro netos, que eram para mim claros
jorros de sol. Julguei que a morte não nos distanciasse uns dos outros;
entretanto, meu amigo, tão logo cerrei os olhos, a paixão do dinheiro
endoideceu minha gente. Tudo começou, ao pé das orações que fizeram de boca,
por intenção de minha felicidade, no sétimo dia depois da grande separação.
Conduzido por mãos amigas ao templo religioso em que se ajuntavam, observei,
assombrado, que filhos e filhas, noras e genros se entreolhavam com inesperada
desconfiança. Em seguida às preces, Linda e Eunice começaram a rixar em nossa casa,
pela posse de alguns pratos de porcelana chinesa, não pelo valor afetivo que
assinalavam, mas pelo preço a serem vendidos na feira de antiguidades. Chamados
à cena, Eduardo e João, com as respectivas esposas, desceram a outras minúcias
e, ali mesmo, no santuário doméstico, vi lembranças quebradas, vasos atirados
pelas janelas, livros queimados e retratos destruídos, com a troca abundante de
murros e palavrões. O lar, dantes respeitado, fez-se palco de luta livre.
Chorei
e implorei concórdia, mas ninguém me sentiu a, presença. Na noite desse mesmo
dia, meus genros procuraram meus filhos, com pesadas reclamações. Afirmando-se
injuriados, exigiam adiantamento sobre a herança. Surpreendidos por ameaças, na
solidão do extenso gabinete que me fora refúgio, meus rapazes assinaram cheques
vultosos, tomados de ódio silencioso. No dia imediato, um dos genros comprou
carro de luxo, iniciando-se em bebedeiras, enquanto o outro dava curso à
recalcada predileção pelas corridas, adquirindo cavalos de grande fama. Linda e
Eunice reclamaram em vão. Totalmente alterados pelo dinheiro fácil, ambos desgarraram
para o vício. Minhas filhas passaram a conhecer dificuldades que nunca viram.
Linda,
mais sensível, adoeceu, e, porque mostrasse profundo desequilíbrio nervoso, foi
recolhida a uma casa de alienados mentais. Eunice enlouqueceu de outro modo...
Acompanhando o marido para fiscalizar-lhe as noitadas alegres, aderiu aos
prazeres noturnos, caiando em conflitos sentimentais de que somente se livrará
Deus sabe quando... João e Eduardo, a princípio unidos pelo interesse, acabaram
desavindos... Disputaram a posse das vacas, praguejando entre si...
Depois,
divergiram quanto à escolha das terras, em seguida venderam--me as casas, desvastando-me
os bens, assumindo a posição de inimigos ferozes... De bolsos recheados, esqueceram
as obrigações de família e puseram-se, desorientados, no tropel da aventura...
As noras igualmente, acreditando mais no dinheiro que no trabalho, descambaram
para mentiras douradas, apodrecendo em preguiça, e os meus pobres netos são
hoje meninos infelizes... Os dois menores estão viciados em gotas entorpecentes
e os dois maiores em flagelo de lambreta...
De
expressão desenxabida, Pereira ajuntou:
–
Nunca recebi dos meus o favor de uma prece realmente sincera, nem o socorro de
um só pensamento de gratidão... No fundo, colhi o que semeei... Acima da
riqueza amoedada, deveria colocar o trabalho e a educação, a fraternidade e a
beneficência... Agora, é preciso voltar à Terra, começar tudo de novo e olvidar
a minha tragédia de papai rico...
Nesse
ínterim, o dirigente da instituição chamou por ele e pude ouvir o instrutor
dizer-lhe, grave :
–
Seu pedido de reencarnação, por enquanto, não tem fundamento... Você tem
créditos para repousar e preparar-se, por mais quarenta a cinquenta anos, junto
de nós...
–
Entretanto – falou Cantídio –, tenho pressa... Aspiro a novo corpo de carne, a
agir e a esquecer...
–
Bem – aduziu o diretor –, para o momento, só dispomos de recurso difícil. Só
existe uma oportunidade, já, já... O irmão poderá reencarnar na região do Rio
de Janeiro, mas... não na beleza e na glória da grande cidade que tanto amamos,
mas, sim, entre os filhos de um casal de idiotas, no antigo Morro dos
Cabritos...
Cantídio,
no entanto, longe de aborrecer-se, pôs as mãos postas em sinal de agradecimento
e gritou, feliz:
–
Obrigado! Obrigado!... Renascer no Morro dos Cabritos, com pouca memória, é
muita felicidade!...
E
concluiu, transtornado de júbilo: – Bendito seja Deus!
Irmão
X
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