PORQUE, SENHOR? ...
E Nicodemos, o grande Nicodemos
dos dias primeiros do Evangelho, passou a contarnos;
- Depois da aparição do Senhor
aos quinhentos da Galiléia, certo dia, ao entardecer, detive-me à beira do lago
de suas pregações, rogando a Ele me dissipasse as dívidas. Ante os ensinamentos
divinos, eu experimentava o entrechoque em torno das idéias de justiça e
misericórdia, responsabilidade e perdão... De que maneira conciliar o bem e o
mal? como estabelecer a diferença entre prêmio e castigo? Atormentado, perante
as exigências da Lei de que eu era intérprete, supliquei-lhe a palavra e eis
que, de súbito, o Excelso Benfeitor apareceu junto de mim... Prostrei-me na
areia e Jesus, aproximando-se, tocou-me, de leve, a cabeça fatigada, e
inquiriu:
- Nicodemos, que pretendes de
mim?
- Senhor – explique -, tenho o
pensamento em fogo, tentando discernir sobre retidão e delinquência, bondade e
correção... Porque te banqueteaste com pecadores e tanta vez te referiste,
quase rudemente, aos fariseus, leais seguidores de Moisés? Acaso, estão certas
as pessoas de vida impura, e erradas aquelas outras que se mostram fiéis à Lei?
Jesus respondeu com inflexão de
brandura inesquecível:
- Nunca disse que os pecadores
estão no caminho justo, mas afirmei que não vim ao mundo socorrer os sãos, e
sim os enfermos. Quanto aos princípios de santidade, que dizer dos bons que
detestam os maus, dos felizes que desprezam os infelizes, se todos somos filhos
de Deus? de que serve o tesouro enterrado ou o livro escondido no deserto?
- Messias – prosseguiu -, porque
dispensaste tanta atenção a Zaqueu, o rico, a ponto de lhe compartilhares a
mesa, sem visitar os lares pobres que lhe circundam a moradia?
- Estive com a multidão, desde as
notícias iniciais do novo Reino!... Relativamente a Zaqueu, é ele um rico que
desejava instruir-se, e furtar a lição, àqueles amigos a quem o mundo apelida
de avaros, é o mesmo que recusar remédio ao doente...
- E as meretrizes, Senhor? porque
as defendeste? - Nicodemos, na hora do Juízo Divino, muitas dessas mesmas
desventuradas mulheres, que censuras, ressurgirão do lodo da angústia, limpas e
brilhantes, lavadas pelo pranto e pelo suor que derramarem, enquanto que
aparecerão pejados de sobra e lama aquelas que lhes prostituíram a existência,
depois de lhes abusarem da confiança, lançando-as à condenação e à
enfermidades.
- Senhor, ouvi dizer que deste a
Pedro o papel de condutor dos teus discípulos... Porquê? não é ele o
colaborador que te negou três vezes?!
- Exatamente por isso... Na dor do remorso pelas
próprias fraquezas, Simão ganhará mais força para ser fiel... Mais que os
outros companheiros, ele sabe agora quanto custa o sofrimento da deserção...
- Mestre, e os ladrões do último
dia? porque te deixaste imolar entre dois malfeitores? e porque asseguraste a
um deles o ingresso no paraíso, junto de ti?
- Como podes julgar
apressadamente a tragédia de criaturas cuja história não conheces desde o
princípio? Não acoberto os que praticam o mal; no entanto, é preciso saber até
que ponto terá alguém resistido à tentação e ao infortúnio para que se
transformam em vítimas do próprio desequilíbrio e há empreiteiros da fome que
responderão pela crueldade com que sonegam o pão... Com referência ao amigo a
quem prometi a entrada imediata na Vida Superior, é verdade que assim o fiz,
mas não disse para quê... Ele realmente foi conduzido ao Mundo Maior para ser
reeducado e atendido em suas necessidades de erguimento e transformação!...
- Senhor – insistiu -, e a
responsabilidade com que nos cabe tratar da justiça? porque pediste perdão ao
Todo-Poderoso para os próprios carrascos, quando dependurado na crus do
martírio, inocentando os que te espancavam?
- Não anulei a responsabilidade em tempo
algum... Roguei, algemado à cruz: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem...”
Com isso, não asseverei que os nossos adversários gratuitos estivessem fazendo
o que deviam fazer... Esclareci, tão-só, que eles não sabiam o que estavam
fazendo e, por isso mesmo, se revelavam dignos da maior compaixão!...
Ante as palavras do Senhor –
concluiu o antido mestre de Israel -, as lágrimas me subiram das entranhas da
lama para os olhos... Nada mais vi que não fosse o véu diáfano do pranto, a
refletir as sombras que anunciavam a noite... Ainda assim, ouvi, como se o
Senhor me falasse longe, muito de longe:
- Misericórdia quero, não sacrifício...
Nesse ponto da narrativa,
Nicodemos calou-se. A emoção sufoca a voz do grande instrutor, cuja presença
nos honrava a mansão espiritual. E, quanto a nós, velhos julgadores do mundo,
que o ouvíramos atentos, entramos todos em meditação e silêncio, de vez que
ninguém apareceu em nossa tertúlia íntima com bastante disposição para
acrescentar palavra.
Irmão
X
Estante da Vida
Francisco Cândido
Xavier
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