A CAMPANHA DA PAZ
Estabelecidos em Jerusalém, depois do Petencostes,
os discípulos de Jesus, sinceramente empenhados à obra do Evangelho, iniciaram
as campanhas imprescindíveis às realizações que o Mestre lhes confiara.
Primeiro, o levantamento de moradia que os
albergasse.
Entremearam possibilidades, granjearam o apoio de
simpatizantes da causa, sacrificaram pequenos luxos, e o teto apareceu, simples
e acolhedor, onde os necessitados passaram a receber esclarecimento e
consolação, em nome do Cristo.
Montada a máquina de trabalho, viram-se defrontados
por novo problema. As instalações demandavam expressivos recursos. Convocações
à solidariedade se fizeram ativas. Velhos cofres foram abertos, canastras
rojaram-se de borco, entornando as derradeiras moedas, e o lar da fraternidade
povoou-se de leitos e rouparia, candeias e vasos, tinas enormes e variados
apetrechos domésticos.
Os filhos do infortúnio chegaram em bando.
Obsidiados eram trazidos de longe, velhinhos que os
descendentes irresponsáveis atiravam à rua engrossavam a estatística dos
hóspedes, viúvas acompanhadas por filhinhos chorosos e magricelas aumentavam na
instituição, dia a dia, e enfermos sem ninguém arrastavam-se na direção da
pousada de amor, quando não eram encaminhados até aí em padiolas, com as marcas
da morte a lhes arroxearem o corpo enlanguescido.
Complicaram-se as exigências da manutenção e
efetuaram-se coletas entre os amigos.
Corações generosos compareceram. Remédios não
escassearam e as mesas foram supridas com fartura.
Obrigações dilatadas reclamaram concurso humano.
Os continuadores de Jesus apelaram das tribunas,
solicitando braços compassivos que lavassem os doentes e distribuíssem os
pratos. Cooperadores engajaram-se gratuitamente e formaram-se os diáconos
prestimosos.
Criancinhas começaram a despontar na estância
humilde e outra espécie de assistência se impôs, rápida. Era necessário
amontoar o material delicado em que os recém-nascidos, à maneira de pássaros
frágeis, pudessem encontrar o aconchego do ninho. Senhoras abnegadas esposaram
compromissos. A legião protetora do berço alcançou prodígios de ternura.
E novas campanhas raiavam, imperiosas. Campanhas
para o trato da terra, a fim de que as despesas diminuíssem. Campanhas para
substituir as peças inutilizadas pelos obsessos, quando em crises de fúria.
Campanhas para o auxílio imediato às famílias desprotegidas de companheiros que
desencarnaram. Campanhas para mais leite em favor dos pequeninos.
Entretanto, se os apóstolos do Mestre encontravam
relativa facilidade para assegurar a mantença da casa, reconheciam-se
atribulados pela desunião, que os ameaçava, terrível.
Fugiam da verdade. Levi criticava o rigor de Tiago,
filho de Alfeu. Tiago não desculpava a tolerância de Levi. Bartolomeu interpretava
a benevolência de André como sendo dissipação.
André considerava Bartolomeu viciado em sovinice.
Se João, muito jovem, fosse visto em prece, na companhia de irmãs caídas em
desvalimento diante dos preconceitos, era indicado por instrumento de escândalo.
Se Filipe dormia nos arrabaldes, velando agonizantes desfavorecidos de arrimo
familiar, regressava sob a zombaria dos próprios irmãos que não lhe penetravam
a essência das atitudes.
Com o tempo, grassaram conflitos, despeitos,
queixumes, perturbações. Cooperadores insatisfeitos com as próprias tarefas
invadiam atribuições alheias, provocando atritos de consequências amargas,
junto dos quais se sobrepunham os especialistas do sarcasmo, transfigurando os
querelantes em trampolins de acesso à dominação deles mesmos.
Partidos e corrilhos, aqui e ali. Cochichos e
arrufos nos refeitórios, nas cozinhas enredos e bate-bocas.
Discussões azedavam o ambiente dos átrios. Fel na
intimidade e desprezo por fora, no público que seguia, de perto, as altercações
e as desavenças.
Esmerava-se Pedro no sustento da ordem, mas em vão.
Aconselhava serenidade e prudência, sem qualquer resultado encorajador. Por
fim, cansado das brigas que lhes desgastavam a obra e a alma, propôs
reunirem-se em oração, a benefício da paz.
E o grupo passou a congregar-se uma vez por semana,
com semelhante finalidade. Apesar disso, porém, as contendas prosseguiam,
acesas. Ironias, ataques, remoques, injúrias...
Transcorridos seis meses sobre a prece em conjunto,
uma noite de angústia apareceu, em que Simão implorou, mais intensamente
comovido, a inspiração do Senhor. Os irmãos, sensibilizados, viram-no engasgado
de pranto. O companheiro fiel, rude por vezes, mas profundamente afetuoso,
mendigou o auxílio da Divina Misericórdia, reconhecia a edificação do Evangelho
comprometida pelas rixas constantes, esmolava assistência, exorava proteção...
Quando o ex-pescador parou de falar, enxugando o
rosto molhado de lágrimas, alguém, surgiu ali, diante deles, como se a parede,
à frente, se abrisse por dispositivos ocultos, para dar passagem a um homem.
À luz mortiça que bruxuleava no velador, Jesus,
como no passado, estava ali, rente a eles...
Era ele, sim, o Mestre!... Mostrando o olhar lúcido
e penetrante, os cabelos desnastrados à nazarena e melancolia indefinível na
face calma, ergueu as mãos num gesto de bênção!...
Pedro gemeu, indiferente aos amigos que o assombro
empolgava:
-Senhor, compadece-te de nós, os aprendizes
atormentados!... Que fazer, Mestre, para garantir a segurança de tua obra?
Perdoa-me se tenho o coração fatigado e desditoso!...
-Simão – respondeu Jesus, sem se alterar -, não me
esqueci de rogar para que nos amássemos uns aos outros...
-Senhor – tornou Cefas -, temos realizado todo o
bem que nos é possível, segundo o amor que nos ensinaste. Nossas campanhas não
descansam...Temos amparado, em teu nome, os aleijados e os infelizes, as viúvas
e os órfãos...
-Sim, Pedro, todas essas campanhas são aquelas que
não podem esmorecer, para que o bem se espalhe por fruto do Céu na Terra; no
entanto, urge saibamos atender à campanha da paz em si mesma...
-Senhor, esclarece-nos por piedade!... Que campanha
será essa?!...
Jesus, divinamente materializado, espraiou o olhar
percuciente na diminuta assembleia e ponderou, triste:
-O equilíbrio nasce da união fraternal e a união
fraternal não aparece fora do respeito que devemos uns aos outros... Ninguém
colhe aquilo que não semeia... Conseguiremos a seara do serviço, conjugando os
braços na ação que nos compete; conquistaremos a diligência, aplicando os olhos
no dever a cumprir; obteremos a vigilância, empregando criteriosamente os
ouvidos; entretanto, para que a harmonia permaneça entre nós, é forçoso pensar
e falar acerca do próximo, como desejamos que o próximo pense e fale sobre nós
mesmos...
E, ante o silêncio que pesava, profundo, o Mestre
rematou:
-Irmãos, por amor aos fracos e aos aflitos, aos
deserdados e aos tristes da Terra, que esperam por nós na luz do Reino de Deus,
façamos a campanha da paz, começando pela caridade da língua.
Irmão X / Chico Xavier – do livro
Contos desta e doutra vida
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