MÃOS ENFERRUJADAS
Pelo Espírito Irmão X (Humberto de
Campos).
Psicografia de Francisco Cândido
Xavier.
Livro: Luz Acima. Lição nº 02. Página
17.
Quando Joaquim Sucupira abandonou o
corpo, depois dos sessenta anos, deixou-nos conhecidos, a impressão de que
subiria incontinenti aos Céus.
Vivera arredado do mundo, no conforto
precioso que herdara dos pais. Falava pouco, andava menos, agia nunca. Era visto
invariavelmente em trajes impecáveis. A gravata ostentava sempre uma pérola de
alto preço, pequena orquídea assinalava a lapela, e o lenço, admiravelmente
dobrado, caía irrepreensível, do bolso mirim. O rosto denunciava-lhe o
apurado culto às maneiras distintas. Buscava, no barbeiro cuidadoso cada manhã,
renovada expressão juvenil. Os cabelos bem postos, embora escassos, cobriam-lhe
o crânio com o esmero possível.
Dizia-se cristão e, realmente, se
vivia isolado, não fazia mal sequer a uma formiga.
Assegurava, porém, o pavor que o
possuía, ante os religiosos de todos os matizes.
Detestava os padres católicos,
criticava as organizações protestantes e categorizava os espíritas no rol dos
loucos.
Aceitava Jesus a seu modo, não
segundo o próprio Jesus.
As facilidades econômicas
transitórias adiavam-lhe as lições benfeitoras do concurso fraterno, no campo
da vida.
E cada vez mais se convencia de que
as melhores diretrizes eram as dele mesmo.
Afastamento individual para evitar
complicações e desgostos. Admitia, sem rebuços, que assim efetuaria preparação
adequada para a existência depois do sepulcro.
Em vista disso, a desencarnação de
homem tão cauteloso em preservar-se, passaria por viagem sem escalas com o
destino à Corte Celeste.
Dava aos familiares dinheiro suficiente
para aventuras e fantasias, a fim de não ser incomodado por eles; distribuía
esmolas vultuosas, para que os problemas de caridade não lhe visitassem o lar;
afastava-se do mundo para não pecar.
Não seria Joaquim Sucupira
perguntavam amigos íntimos, o tipo religioso perfeito?
Distante de todas as complicações da
experiência humana, pela força da fortuna sólida que herdara dos parentes,
seria impossível que não conquistasse o paraíso.
Contudo, a responsabilidade que o
defrontava agora não correspondia à expectativa geral.
Joaquim Sucupira, desencarnado,
ingressava numa esfera de ação, dentro da qual parecia não ser percebido pelos
grandes servidores celestiais.
Via-os em movimentação brilhante, nos
campos e nas cidades.
Segredavam ordens divinas aos ouvidos
de todas as pessoas em serviço digno.
Chegara a ver um anjo singularmente
abraçado à uma velha cozinheira analfabeta.
Em se aproximando, todavia, dos
Mensageiros do Céu, não era por eles atendido.
Conseguia andar, ver, ouvir, pensar.
No entanto, desventurado Joaquim!!!
As mãos e os braços mantinham-se
inertes, semelhavam-se a antenas de mármore, irremediavelmente ligadas ao corpo
espiritual.
Se intentava matar a sede ou a fome,
obrigava-se a cair de bruços porque não dispunha de mãos amigas que o
ajudassem.
Muito tempo suportara semelhante
infortúnio, multiplicando apelos e lágrimas, quando foi conduzido por entidade
caridosa a pequeno tribunal de socorro, que funcionava de tempos em tempos, nas
regiões inferiores onde vivia compungido.
O benfeitor que desempenhava ali
funções de juiz, reunida a assembléia de Espíritos penitentes, declarou não
contar com muito tempo, em face das obrigações que o prendiam nos círculos mais
altos e que viera até ali somente para liquidar casos mais dolorosos e
urgentes.
Devotados companheiros do bem
selecionaram a meia dúzia de sofredores que poderiam ser ouvidos, dentre os
quais, por último, figurou Joaquim Sucupira, a exibir os braços petrificados.
Chorou, rogou, lamuriou-se.
Quando pareceu disposto a fazer o
relatório geral e circunstanciado da existência finda, o julgador obtemperou:
- Não, meu amigo, não trate de sua
biografia.
O tempo é curto. Vamos ao que interessa.
Examinou-o detidamente e
observou, passados alguns instantes:
- Joaquim, você era
casado?
-
Sim.
- Zelava a
residência?
- Minha mulher cuidava de
tudo.
- Foi
pai?
-
Sim.
- Cuidava dos filhos em
pequeninos?
- Tínhamos suficiente número de
criadas e amas.
- E quando
jovens?
- Eram naturalmente entregues aos
professores.
- Exerceu alguma profissão
útil?
- Não tinha necessidade de trabalhar
para ganhar o pão.
- Nunca sofreu dor de cabeça pelos
amigos?
- Sempre fugi, receoso das amizades.
Não queria prejudicar, nem ser prejudicado.
O julgador interrompeu-se, refletiu
longamente e prosseguiu:
- Você adotou alguma religião?
- Sim, eu era cristão - esclareceu
Joaquim Sucupira.
- Ajudava os católicos?
- Não. Detestava os sacerdotes.
- Cooperava com as Igrejas
reformadas?
- De modo algum. São excessivamente
intolerantes.
- Acompanhava os espíritas?
- Não. Temia-lhes presença.
- Amparou os doentes em nome do
Cristo?
- A terra tem numerosos enfermeiros.
- Auxiliou criancinhas abandonadas?
- Há creches por toda parte.
- Escreveu alguma página consoladora?
- Para quê? O mundo está cheio de
livros e escritores.
- Utilizava o martelo ou o pincel?
- Absolutamente.
- Socorreu animais desprotegidos?
- Não.
- Agradava-lhe cultivar a terra?
- Nunca.
- Plantou árvores benfeitoras?
- Também não.
- Dedicou-se ao serviço de condução
das águas, protegendo paisagens empobrecidas?
Joaquim Sucupira fez um gesto de
desdém e informou:
- Jamais pensei nisto.
O instrutor indagou-lhe sobre todas
as atividades dignas conhecidas no Planeta.
Ao fim do interrogatório, opinou sem
delongas:
- Seu caso explica-se: - Você tem as
mãos enferrujadas.
Ante a careta de Joaquim Sucupira
amargurado, esclareceu:
- É o talento não usado, meu amigo.
Seu remédio é regressar à lição.
Repita o curso terrestre.
Joaquim Sucupira, confundido,
desejava mais amplas elucidações.
O juiz, porém, sem tempo de ouvi-lo,
entregou-o aos cuidados de outro companheiro.
Rogério, carioca desencarnado, tipo
1945, recebeu-o de semblante amável e feliz, após escutar-lhe as compridas
lamentações, convidou, pacientemente:
- Vamos Joaquim Sucupira. Você
entrará na fila em breves dias.
- Fila? - interrogou Joaquim
Sucupira, boquiaberto.
- Sim - acrescentou o alegre ajudante
-, na fila da reencarnação.
E, puxando Joaquim Sucupira pelos
ombros o que você precisa, Joaquim Sucupira é de movimento.
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