Oh Jerusalém!... Oh Jerusalém!...
É possível a
estranheza dos que vivem na Terra com respeito à atitude dos desencarnados,
esmiuçando-lhes as questões e opinando sobre os problemas que os inquietam.
É lógico,
porém, que os recém libertos do mundo falem mais com o seu cabedal de
experiências do passado, que com a sua ciência do presente, adquirida à custa
de faculdades novas, que o homem não está ainda à altura de compreender.
Podem
imaginar-se na Terra determinadas condições da vida sobre a superfície de
Marte; mas, o que interessa, por enquanto, ao mundo semelhantes descobertas, se
os enigmas que o assoberbam ainda não foram decifrados? Para o exilado da
Terra, não vale a psicologia do homem desencarnado. Tateando na prisão escura
da sua vida, seria quase um crime aumentar-lhe as preocupações e ansiedades. Eu
teria muitas coisas novas a dizer, todavia, apraz-me, com o objeto de me fazer
compreendido, debruçar nas bordas do abismo em que andei vacilando, subjugado
nos tormentos, perquirindo os seus logogrifos inextricáveis pata arrancar as lições
da sua inutilidade.
Também o homem
nada tolera que venha infringir o método da sua rotina.
Presumindo-se
rei na criação, não admite as verdades novas que esfacelam a sua coroa de argila.
Os mortos,
para serem reconhecidos, deverão tanger a tecla da mesma vida que abandonaram.
Isso é
intuitivo.
O jornalista,
para alinhavar os argumentos da sua crônica, busca os noticiários ,
aproveita-se dos acontecimentos do dia, tirando a sua ilação das ocorrências
,do momento.
E meu espírito
volve a contemplar o espetáculo angustioso dessa Abissínia, abandonada no seio
dos povos, como o derradeiro reduto da liberdade de uma raça infeliz, cobiçada
pelo imperialismo do século, lembrando-me de Castro Alves nas suas amarguradas
"Vozes d'África":
Deus, ó Deus,
onde estás que não respondes?
Em que mundo,
em que estrela tu te escondes,
Embuçado nos
céus?
Há dois mil
anos te mandei meu grito,
Que embalde,
desde então, corre o infinito.
Onde estás,
Senhor Deus?
Da Roma
poderosa partem as caravanas de guerreiros. Cartago agoniza no seu desgraçado
heroísmo. Públio Cornélio consegue a mais estrondosa das vitórias. Os cérebros
dos patrícios ilustres embriagam-se no vinho do triunfo: e nas galeras
suntuosas, onde as águias simbolizam o orgulhoso poder da Roma eterna, lamentam-se
os escravos nos seus nefandos martírios.
Os Césares
enchem a Cidade das Sabinas de troféus e glórias. Todos os deuses são
venerados. Os países são submetidos e os povos entoam o hino da obediência à
senhora do mundo.
Já não se ouve
a melodiosa flauta de Pã nos bosques da Tessália e nas margens do Nilo apagam-se
as luzes dos mais suaves mistérios.
Vítima, porém,
dos seus próprios excessos, o grande império vê apressar-se a sua decadência.
No esboroamento dos séculos, a invencível potência dos Césares é um montão de
ruínas. Sobre os seus mármores suntuosos aumentam as destruições.
Roma dormiu o
seu grande sono.
Ei-la,
contudo, que desperta.
Mussolini
deixa escapar um grito do seu peito de ferro e a Roma antiga acorda do letargo,
reconhecendo a perda dos seus imensos domínios.
Urge, porém,
recuperar o poderio, empenhando-se em alargar o seu império colonial.
Onde e como?
O mundo está
cheio de leis, de tratados de amparo recíproco entre as nações.
A França já
ocupou todos os territórios ao alcance das suas possibilidades, a Alemanha está
fortificada para as suas aventuras, o Japão tem as suas vistas sobre a China, e
a Inglaterra, calculista e poderosa, não pode ceder um milímetro no terreno das
suas conquistas.
Mas, Roma quer
a expansão da sua força econômica e prepara-se para roubar a derradeira ilusão
de um povo desgraçado, ao qual não basta a lembrança amarga dos cativeiros
multisseculares, julgando-se livre na obscura faixa de terra para onde recuou,
batido pela crueldade das potências imperialistas.
Que mal
fizeste à civilização corrompida dos brancos, ó pequena Abissínia, grande pela
expressão resignada do teu ardente heroísmo?
Como pudeste,
das areias calcinantes do deserto, onde apuras o teu espírito de sacrifício,
penetrar nas instituições européias, provocando a fúria das suas armas?
Deixa que
passem sob o teu sol de fogo as hordas de vândalos, sedentas de chacina e de sangue.
Sobre as tuas
esperanças malbaratadas derramará o Senhor o perfume da sua misericórdia. Os
humildes têm o seu dia de bem-aventurança e de glória.
Não importa
sejas o joguete dos caprichos condenáveis dos teus verdugos, porque sobre o
mundo todas as frontes orgulhosas desceram do pináculo da sua grandeza para o
esterquilínio e para o pó.
Se tanto for
preciso, recebe sobre os teus ombros a mortalha de sangue, porque, junto do maravilhoso
império da civilização apodrecida dos brancos, ouve-se a voz lamentosa de um
novo Jeremias: - Ó Jerusalém!... Jerusalém!...
Humberto de
Campos
Recebida em Pedro Leopoldo a 11
de agosto de 1935
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