Os incrédulos
Crer que tudo se sabe é um erro profundo:
O horizonte tomar por limites do mundo.
Lemierre.
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Um grande número
de homens sofrem de verdadeira miopia intelectual e, segundo a imagem precisa
de Lemierre, tomam o seu horizonte pelos limites do mundo. Os fatos novos, as
idéias novas os ofuscam, os horripilam. Não querem ver mudança alguma na marcha
costumeira das coisas. A história do progresso dos conhecimentos humanos é para
eles letra morta.
A audácia dos
pesquisadores, dos inventores, dos revolucionários, parece-lhes criminosa.
Afigura-se-lhes, aos seus olhos, que a humanidade tenha sido sempre o que é
hoje, e eles não se lembram nem da idade da pedra, nem da invenção do fogo ou
das casas, das carruagens e dos caminhos de ferro, nem das conquistas do espírito,
nem das descobertas da Ciência. Neles ainda se encontram alguns traços da
herança dos peixes e quiçá dos moluscos.
Comodamente
assentados, de resto, em suas largas poltronas, esses admiráveis burgueses se
conservam imperturbavelmente satisfeitos. São absolutamente incapazes de
admitir o que não compreendem e nem sequer desconfiam de que nem tudo compreendem.
Ignoram que no
fundo da explicação de todos os fenômenos da natureza está o desconhecido e
contentam-se com simples mudanças de palavras. Por que razão cai uma pedra?
“Porque a Terra a atrai.” Uma resposta assim tão clara basta à sua ambição.
Acreditam eles compreender. Uma fraseologia clássica os seduz, como no tempo de
Molière: “ossabandus, nequeis, nequer,
potarinum quipsa milus... eis aí justamente o que faz que vossa filha seja
muda”, dizia Sganarelo.
Em todos os
séculos, quaisquer que sejam os graus de civilização, encontram-se desses
homens simples, tranqüilos, nem sempre desprovidos de vaidade, que negam
candidamente as coisas inexplicáveis e que pretendem julgar a insondável
organização do Universo. Tais como duas formigas, em um jardim, entretendo-se a
trocar idéias sobre a história da França ou sobre a distância a que nos encontramos
do Sol.
Percorramos a
História e edifiquemo-nos com alguns desses exemplos.
A escola de
Pitágoras, libertando-se das idéias comuns sobre a natureza, elevara-se até à
noção do movimento diurno do nosso planeta, que poupa ao céu imenso e sem limites
a obrigação absurda de girar em vinte e quatro horas em torno de um ponto
insignificante. Que o sufrágio universal se revolte contra esta idéia genial,
ainda se tolera: não se pode pedir a um elefante que voe até o ninho das
águias. Mas a força dos prejuízos vulgares é tal que, mesmo espíritos
superiores como o próprio Platão e Arquimedes, essas duas brilhantes
inteligências, sentiram-se na impossibilidade de elevar-se a esta concepção,
recusada até pelos astrônomos Hipparcho e Ptolomeu. Este não pôde conter-se de
rir a bandeiras despregadas de uma tal chocarrice. Qualifica ele a teoria do
movimento da Terra de “completamente ridícula”. A expressão é sobremodo
pitoresca. Como que se vê o ventre de um bom monge, a sacudir-se e rebolar-se
todo, diante de um gracejo desta força, panu
guéloïotaton! Deus do céu, como isso é divertido! A Terra a girar! Estão
doidos os pitagóricos: a cabeça deles é que gira.
Sócrates bebe a
cicuta por se ter libertado das superstições de seu tempo. Anaxágoras é
perseguido por ter ousado ensinar que o Sol é maior que o Peloponeso. Dois mil
anos mais tarde, Galileu é perseguido, a seu turno, por afirmar a grandeza do
sistema do mundo e a insignificância do nosso planeta.
A passos lentos
avança a pesquisa da verdade, mas as paixões humanas e os cegos interesses
dominadores permanecem inalteráveis.
E a dúvida ainda
perdura, apesar das provas acumuladas por toda a moderna astronomia. Não
possuímos nós, em nossas bibliotecas, uma obra publicada em 1806, expressamente
contra o movimento da Terra e na qual seu autor declara que jamais poderá admitir
esteja ela a girar como um capão assado ao espeto?
Esse intrépido
capão era um homem, aliás, de bastante espírito (o que não exclui a
ignorância); era um membro do Instituto, ostentando o nome de Mercier, mais
conhecido por seu Tableau de Paris e
que se poderia supor dotado de um critério mais elevado e mais firme.
Assistia eu, certo
dia, a uma sessão da Academia das Ciências, dia esse de hilariante recordação,
em que o físico du Moncel apresentou o fonógrafo de Édison à douta assembléia.
Feita a apresentação, pôs-se o aparelho docilmente a recitar a frase registrada
em seu respectivo cilindro. Viu-se então um acadêmico de idade madura, de
espírito penetrado, saturado mesmo das tradições de sua cultura clássica,
nobremente revoltar-se contra a audácia do inovador, precipitar-se sobre o
representante de Édison e agarrá-lo pelo pescoço, gritando: “Miserável! nós não
seremos ludibriados por um ventríloquo!” Senhor Bouillaud chamava-se este
membro do Instituto. Foi isso a 11 de março de 1878. Mais curioso ainda é que
seis meses após, a 30 de setembro, em uma sessão análoga, sentiu-se ele muito
satisfeito em declarar que, após maduro exame, não constatara no caso mais do
que simples ventriloquia, mesmo porque “não se pode admitir que um vil metal
possa substituir o nobre aparelho da fonação humana”. Segundo esse acadêmico, o
fonógrafo não era mais do que uma “ilusão de acústica”.
Quando Lavoisier
procedeu à análise do ar e descobriu que o mesmo se compõe principalmente de
dois gases, o oxigênio e o azoto, essa descoberta desconcertou mais de um
espírito positivo e equilibrado.
Um membro da
Academia das Ciências, o químico Baumé (inventor do areômetro), acreditando
firmemente nos quatro elementos da ciência antiga, escrevia em tom doutoral:
“Os elementos ou princípios dos corpos têm sido reconhecidos e confirmados
pelos físicos de todos os séculos e de todas as nações. Não é presumível que
esses elementos, considerados como tais durante um lapso de dois mil anos,
sejam postos, em nossos dias, em o número das substâncias compostas, e que se
possa dar como certos tais processos para decompor a água e o ar e tais raciocínios absurdos, para não dizer
coisa pior, com que se pretende negar a existência do fogo e da terra.
As propriedades
reconhecidas nos elementos correspondem a todos os conhecimentos físicos e
químicos adquiridos até o presente; têm elas servido de base a uma infinidade
de descobertas e de teorias, cada qual mais luminosa, às quais seria preciso retirar
toda confiança, se o fogo, o ar, a água e
a terra não fossem mais reconhecidos como elementos.
Todo o mundo sabe
hoje em dia que esses quatro elementos, tão religiosamente defendidos, não
existem e que a razão está do lado dos químicos modernos que conseguiram decompor
o ar e a água. Quanto ao fogo ou flogístico que, segundo Baumé e seus contemporâneos,
era o deus ex machina da natureza e
da vida, ele jamais existiu senão na imaginação dos professores.
O próprio
Lavoisier, esse grande químico, não está indene da mesma acusação contra os que
“supõem tudo descoberto”, pois que dirigiu um sábio relatório à Academia para
demonstrar que não podem cair pedras
do céu. Ora, a queda de aerólitos, a propósito da qual ele escreveu esse
relatório oficial, tinha sido observada em todos os seus detalhes: tinha-se
visto e ouvido o bólido explodir, bem como o aerólito cair, tendo sido
levantado do chão ainda ardente, para ser em seguida submetido ao exame da
Academia. E esta declarou, pelo órgão do seu relator, que a coisa era
inacreditável e inadmissível. Assinalemos também que há milhares de anos caem
pedras do céu diante de centenas de testemunhas, que tem sido apanhado grande
número dessas pedras, tendo sido conservadas diversas nas igrejas, nos museus,
nas coleções. Mas faltava ainda, no fim do último século, um homem independente
para afirmar que de fato caem essas pedras do céu: tal homem foi Chladui.
Não atiro pedras
em Lavoisier nem noutra qualquer pessoa, entenda-se bem, mas na tirania dos
prejuízos. Não se acreditava, não se queria acreditar que pudessem cair pedras
do céu. Isso parecia contrário ao bom senso. Por exemplo, Gassendi é um dos
espíritos mais independentes e mais esclarecidos do século XVII. Um aerólito
que pesava trinta quilogramas caiu na Provença, em 1627, em um dia de sol muito
claro: Gassendi viu-o, tocou-o, examinou-o – e o atribuiu a qualquer erupção
vulcânica terrestre desconhecida.
Os professores
peripatéticos do tempo de Galileu afirmaram de forma doutoral que o Sol não podia ter manchas.
O espectro de
Brocken, a fata Morgana, a miragem foram negados por grande número de pessoas
sensatas, enquanto não puderam ser explicados.
Não há muito tempo
ainda (1890) que a faísca elétrica era posta em dúvida em plena Academia das
Ciências de Paris, por aquele mesmo dos membros do Instituto, que melhor devia
conhecê-la.
A história dos
progressos da Ciência mostra-nos, a cada instante, que de observações simples e
quase vulgares podem provir grandes e fecundos resultados.
No domínio do
estudo científico não se deve desdenhar de coisa alguma. Que maravilhosa
transformação da vida moderna foi produzida pela eletricidade! Telégrafo,
telefone, luz elétrica, motores ligeiros e rápidos, etc. Sem a eletricidade, as
nações, as cidades, os costumes seriam bem outros. Sem ela, por exemplo, a
locomotiva a vapor não teria experimentado tantos melhoramentos, porque se as
estações não pudessem comunicar-se instantaneamente umas com as outras, os
trens não poderiam circular com segurança em suas linhas. Ora, o berço dessa
admirável fada está humildemente velado nos primeiros albores, apenas sensíveis,
da nascente aurora. Não se distinguem aí mais do que elementos muito vagos, que
olhares perspicazes tiveram a glória de assinalar e de apontar à atenção do
mundo.
É digno de
rememoração o caldo de rãs de Mme. Galvâni, em 1791. Galvâni desposara a
encantadora filha de seu antigo professor, Lúcia Galeózzi e amava-a
enternecidamente. Estava ela doente dos pulmões em Boulogne. O médico
recomendara um caldo de rãs, alimento aliás excelente. O próprio Galvâni se
dispôs a prepará-lo.
Assentado na
varanda de sua casa, conta-se, esfolara ele um certo número desses pequenos
animais, pendurando os membros inferiores, separados do tronco, no gradil de
ferro, por meio de pequenos grampos de cobre que serviam às suas experiências,
quando notou, com admiração justificada pela estranheza do fenômeno, que as
pernas das rãs agitavam-se convulsivamente, todas as vezes que tocavam
acidentalmente o ferro do gradil. Galvâni, que era professor de física na
universidade de Bolonha, estudou o fato com rara sagacidade e descobriu logo as
condições necessárias para reproduzi-lo.
Tomemos os membros
inferiores de uma rã esfolada; observemos os nervos lombares, os filamentos
brancos. Se tomarmos esses nervos e os envolvermos em uma folha de estanho e se
colocarmos as pernas, em estado de flexão, sobre uma lâmina de cobre, então,
fazendo a pequena lâmina de estanho tocar a lâmina de cobre, veremos
imediatamente os músculos contraírem-se, sendo repelido com bastante força
qualquer pequeno obstáculo contra o qual esteja apoiada a extremidade das patas
da rã. Tal a experiência a que Galvâni foi conduzido fortuitamente; deve-se a
ele a descoberta que tem o seu nome: o galvanômetro,
que deu origem, logo em seguida, à pilha de Volta, à galvanoplastia e a tantas
outras aplicações da eletricidade.
A observação do
físico de Bolonha foi recebida com imensa explosão de riso, à exceção de alguns
sábios circunspectos que lhe deram a merecida atenção. Entristeceu-se muito com
isso o pobre inventor. “Sou atacado – escrevia ele em 1792 – por duas seitas
perfeitamente opostas: a dos sábios e a dos ignorantes. Uns e outros riem-se de
mim e me chamam mestre de dança das rãs. Entretanto eu sei que descobri uma das
forças da Natureza.”
Não fora, pela
mesma época, em absoluto negado o magnetismo humano, em Paris, pela Academia
das Ciências e pela Faculdade de Medicina? Esperou-se para o acreditar (e demos
graças a Deus!) que Jules Cloquet operasse de um câncer no seio, sem dor, uma
mulher previamente magnetizada.[i]
O mesmo aconteceu
com a descoberta da circulação do sangue: Guy-Patin e a Faculdade não
acicataram Harvey com os seus sarcasmos?
Conheci em Turim,
em 1873, um descendente, muito pobre, do marquês de Jouffroy, meu compatriota do
Alto-Marne, inventor dos barcos a vapor, em 1776. Sabe-se que este engenheiro
inventor esgotara todos os seus recursos em demonstrar a possibilidade de
aplicar o vapor à navegação. Um primeiro barco deslizou sobre o rio Doubs, em
Baume-les-Dames. Um outro subiu o Saôna, em Lião, até à ilha de Barbe. Para a
exploração do seu invento, Jouffroy tentou fundar uma companhia: tornava-se-lhe
necessário, porém, um privilégio. Submetida pelo governo a questão à Academia
das Ciências, esta, sob a inspiração de Perier (o autor da bomba de incêndio de
Chaillot), respondeu com um parecer desfavorável. Todo o mundo, ainda por cima,
assediava o pobre marquês com zombarias por causa de sua pretensão de “querer
conciliar o fogo com a água” e saudavam-no com o apelido de “Jouffroy da
Bomba”. O infeliz inventor acabou por perder a coragem, emigrando em seguida
por ocasião da Revolução, para retornar à França durante o Consulado,
constatando então que Fulton, por sua vez, não era mais feliz com o primeiro
cônsul do que ele mesmo tinha sido com o antigo regime. Por outro lado, Fulton
não pôde convencer, de forma alguma, a Inglaterra, em 1804, e foi somente em
1807 que seu primeiro barco a vapor pôde ser lançado vitoriosamente no Hudson,
em sua própria pátria que acabou por lhe fazer justiça, um pouco tardiamente.
Quase todos os
inventores têm sido assim tratados. Um outro de meus compatriotas do
Alto-Marne, Philippe Lebon, que inventou a iluminação a gás em 1797, morreu em
1804 (assassinado, segundo se diz, nos Campos Elíseos, em Paris) no dia da
cerimônia do coroamento do imperador, sem ter visto sua idéia adotada pela
pátria. Sobretudo objetava-se que uma lâmpada sem mecha não podia acender-se! A
iluminação a gás foi aplicada em 1805 pela Inglaterra, em Birmingham; em 1813
em Londres; em 1818 em Paris.
Na época da
criação dos trens de ferro houve engenheiros que demonstraram que esses trens
não caminhariam e que as rodas das locomotivas rodariam sempre sobre o mesmo
lugar.
Na Câmara dos
Deputados, em 1838, Arago arrefeceu o entusiasmo dos partidários da nova
invenção, falando da inércia da matéria, da tenacidade dos metais e da
resistência do ar. “As velocidades, dizia ele, serão grandes, muito grandes,
mas não tanto quanto se tinha esperado. Não nos percamos em palavras. Fala-se
do acréscimo do trânsito. Em 1836 o montante total das despesas de transportes,
em França, elevou-se a 2.803.000 francos. Se todos os caminhos de ferro
projetados fossem construídos, se todo o trânsito se efetuasse pelos trilhos e
pelas locomotivas, essa cifra se reduziria a 1.052.000. Importaria isso em uma
diminuição anual de 1.751.000 francos. Perderia, portanto, o país cerca de dois
terços do custo total do transporte pelas estradas de rodagem. Precatemo-nos da
imaginação, essa loucura do conhecimento. Dois trilhos de ferro paralelos não
darão uma fase nova aos brejos da Gasconha.” E todo o discurso continua nesse
tom! Bem se vê que, quando se trata de idéias novas, podem os maiores espíritos
enganar-se.
E o Sr. Thiers
dizia: “Admito que os caminhos de ferro apresentarão algumas vantagens para o
transporte dos viajantes, se o respectivo uso for limitado a algumas linhas
muito curtas, terminando em grandes cidades como Paris. Não se deve pensar em
grandes linhas.”
E Proudhon: “É uma
opinião banal e ridícula essa de pretender que os caminhos de ferro podem
servir à circulação das idéias.”
Na Baviéra, o
Colégio Real de Medicina, consultado, declarou que os caminhos de ferro
causariam, se fossem construídos, os mais graves danos à saúde pública, porque
um movimento, assim tão rápido, provocaria nos viajantes abalos cerebrais e
vertigens no público exterior; em conseqüência recomendou o encerramento das
linhas entre duas cercas de madeira à altura dos vagões.
Quando foi
proposto, em 1853, o estabelecimento de um cabo submarino entre a Europa e a
América, uma de nossas grandes autoridades em física, Babinet, do Instituto,
examinador na Escola Politécnica, escreveu na Revue des Deux Mondes: “Não posso considerar como sérias essas
idéias; a teoria das correntes poderia
dar provas insofismáveis da
impossibilidade de uma tal transmissão, ainda mesmo que não se tivesse em conta
as correntes que por si mesmas se estabelecem em um longo fio elétrico e que
são muito sensíveis no pequeno trajeto de Douvres a Calais. O único meio de ligar o antigo ao novo
mundo é franquear o estreito de Béring, a menos que se tome a resolução de
passar pelas ilhas Féroe, pela Islândia, pela Groenlândia e pelo Labrador.”
(!!)
O geólogo Élie de
Beaumont, secretário perpétuo da Academia das Ciências, morto em 1874, jamais
cessou de negar, em toda a sua vida, a existência do homem fóssil.
Pode-se ler nos
relatórios (Comptes Rendus) da
Academia das Ciências, com a data de 13 de julho de 1873, que, tendo o Instituto
de nomear um correspondente, Darwin foi recusado, para dar lugar a um senhor
Loven.
Na Inglaterra, a
Sociedade Real recusou em 1841 a inserção, em seus Anais, da mais importante memória do célebre Joule, fundador, em
Mayer, da termodinâmica; e Thomas Young, fundador, com Fresnel, da teoria
ondulatória da luz, foi ridicularizado por lorde Broughan.
Por outro lado,
vendo Mayer, na Alemanha, o cepticismo astuto com que sua imortal descoberta
era acolhida pelos sábios oficiais, começou a duvidar de si mesmo e
precipitou-se de uma janela abaixo! Um pouco mais tarde as academias
estendiam-lhe os braços. O grande eletricista Ohm foi tratado como louco por
seus compatriotas alemães.
Quando Franklin
comunicou à Sociedade Real de Londres as suas experiências sobre o poder
condutor das hastes de ferro para a eletricidade atmosférica, não obteve mais
do que uma explosão de hilaridade, e a ilustre companhia recusou
terminantemente imprimir seu memorial.
E como deixar de
recordar-nos do que sucedeu por ocasião do invento do óculo de alcance! Ninguém
lhe compreendeu a importância, e meio século mais tarde o eminente astrônomo
Hévélius recusou-se a adaptar vidros aos seus instrumentos para seu Catálogo de
estrelas, porque supunha que eles prejudicariam a precisão das determinações de
posição.
Exemplos como estes
poderiam ser multiplicados até o fim do mundo... São eles suficientes para
edificar-nos a respeito de um dos aspectos do espírito humano e de uma das
características que não devem ficar à margem da nossa pesquisa da verdade.
Um amigo de trinta
anos de afetuosa camaradagem e de doce afinidade intelectual, Eugène Nus,
escreveu em uma de suas obras, Choses de
l’Autre Monde:
Aos
manes dos sábios,
Brevetados, patenteados,
Enfeitados, condecorados e
enterrados,
Que repeliram
A rotação da terra,
Os meteoritos,
O galvanismo,
A circulação do sangue,
A vacina,
A ondulação da luz,
O pára-raios,
A daguerreotipia,
O vapor,
A hélice,
Os paquetes,
Os caminhos de ferro,
A iluminação a gás,
O magnetismo,
E o resto;
Aos que, vivos e por nascer,
fazem o mesmo,
No presente
E o mesmo no futuro hão de
fazer.
Eu acho
que seria muita irreverência de minha parte imitá-lo e por isso me absterei de
escrever a mesma dedicatória no alto deste livro. Lembro-a, entretanto, e a
faço imprimir, porque não deixa ela de ter seu valor filosófico e
acrescentarei, com um historiador desses fenômenos, que tais retardatários, por
toda parte encontrados, nas ciências, nas artes, na indústria, na política, na
administração, etc., têm sua utilidade: “Passados ao estado de marcos, balizam
a estrada do progresso.”
Augusto Comte e
Littré como que traçaram à Ciência seus rumos definitivos, seus rumos
“positivos”. Não admitir senão o que se vê, o que se toca, o que se ouve, o que
fica subordinado ao testemunho direto dos sentidos, e não procurar conhecer o
incognoscível – eis, há meio século, a regra de conduta da Ciência.
Vejamos, porém.
Analisando os testemunhos de nossos sentidos, verificamos que eles nos enganam
de um modo absoluto. Vemos o Sol, a Lua e as estrelas girarem em torno de nós:
é falso. Sentimos a terra imóvel: é falso. Vemos o Sol levantar-se acima do
horizonte: ele está abaixo do horizonte. Tocamos corpos sólidos: não há corpos
sólidos. Ouvimos sons harmoniosos: o ar não transporta mais do que ondas em si
mesmas silenciosas. Admiramos os efeitos da luz e das cores que fazem viver aos
nossos olhos o esplêndido espetáculo da natureza: em realidade não há nem luz,
nem cores, mas somente movimentos etéreos obscuros que, influenciando nosso
nervo ótico, dão-nos as sensações luminosas. Queimamos o nosso pé ao fogo: é,
sem o sabermos, em nosso cérebro somente que reside a sensação da queimadura.
Falamos de calor e de frio: não há no Universo nem calor nem frio, mas somente
movimento. Como se vê, os nossos sentidos nos enganam a respeito da realidade.
Sensação e realidade são coisas distintas.
Não é tudo. Além
disso nossos pobres cinco sentidos são insuficientes. Não nos deixam eles
sentir mais do que pequeno número dos movimentos que constituem a vida do
Universo. Para dar uma idéia do que afirmo, repetirei aqui o que escrevia em Lúmen, há um terço de século: “Desde a
última sensação acústica percebida por nosso ouvido, resultante de 36.850 vibrações
por segundo, até a primeira sensação ótica percebida por nossos olhos e que é
devida a 400.000.000.000.000 de vibrações na mesma unidade de tempo, nada mais
podemos perceber. Existe entre esses dois extremos um intervalo enorme, com o
qual nenhum de nossos sentidos se põe em relação. Se tivéssemos outras cordas
em nossa lira, dez, cem, mil, a harmonia da natureza se traduziria mais
completamente, fazendo-as entrar em vibração.” De um lado, somos enganados
pelos sentidos; de outro, incompleto é o seu testemunho.
Não há, portanto,
motivo para sermos tão orgulhosos de nossos sentidos, nem para erigirmos em princípio
uma pretensa filosofia positiva.
Sem dúvida, é
necessário utilizarmo-nos do que possuímos. A fé religiosa diz à razão:
“Amiguinha, não tens mais do que um candeeiro para te conduzir: apaga-o e
deixa-te guiar por mim.” Não é assim que pensamos. Não temos senão um
candeeiro, e mesmo assim um mau candeeiro; mas apagá-lo seria o cúmulo da
cegueira. Reconhecemos, pelo contrário, em princípio, que a razão, ou, se
preferem, o raciocínio, deve sempre e em tudo ser o nosso guia. fora disso nada
mais existe. Mas não circunscrevamos a ciência em um círculo estreito. Volto
ainda a Augusto Comte, porque é ele o fundador da escola moderna e representa
um dos maiores espíritos do nosso século. Limita ele a esfera da astronomia ao
que era conhecido em seu tempo. É simplesmente absurdo. “Concebemos – diz ele –
a possibilidade de estudar a forma dos astros, suas distâncias, seus
movimentos, ao passo que jamais poderemos estudar, qualquer que seja o meio
posto em prática, sua composição química.” Este célebre filósofo morreu em
1857. Cinco anos mais tarde, a análise espectral fazia precisamente conhecer a
composição química dos astros e classificava as estrelas segundo a ordem de sua
natureza química.
Tal qual como os
astrônomos do século XVII, que afirmavam não poderem existir mais do que sete
planetas.
O desconhecido de
ontem é a verdade de amanhã.
Estaríamos em
erro, entretanto, supondo que os sábios (certos sábios) e os homens mencionados
sejam os únicos responsáveis por esses atos de inércia. Dá-se o mesmo com a maioria
da humanidade e o grande público está no mesmo caso. A massa do cérebro humano
é pouco mais ou menos a mesma, tanto no sábio, como no literato, no artista, no
magistrado, no político, no operário, no agricultor, como igualmente no ocioso.
As censuras que
podem ser feitas aos homens cujo espírito é fechado às novas concepções; a
esses que, como Napoleão, por exemplo (a quem a invenção teria assegurado a
ruína de sua mais poderosa inimiga, a Inglaterra), não compreenderam a invenção
do vapor, aplicam-se por assim dizer a todo o mundo. Um homem, aliás, pode ser
muito superior com relação a certas faculdades e muito inferior quanto a
outras. Os deploráveis exemplos que precedem não levam, pois, à condenação dos
sábios em particular e ainda menos à da Ciência. Somente o que se desejaria era
não ver os espíritos esclarecidos caírem na falência comum da vulgaridade, e é
por causa da estima que eles nos inspiram, que mais assinalamos as suas
fraquezas.
É justo
lembrarmo-nos, entretanto, que há uma escusa a essas obstruções, a esses
obstáculos, a essas resistências. Em geral, ninguém está seguro da realidade
nem do valor das coisas novas. Os primeiros barcos a vapor caminhavam mal e não
valiam os navios a vela. Os primeiros bicos de gás iluminavam pouco e exalavam
mau cheiro. A Terra, na verdade, parece bem fixa e bem estável. A água e o ar
parecem, de fato, elementos primários da natureza. Não parece natural que caiam
pedras do céu. As primeiras manifestações da eletricidade eram incoerentes. Os
caminhos de ferro desarranjavam tudo.[ii]
E depois, se o
gênio se avantaja à vulgaridade, uma nova descoberta também se adianta ao seu
tempo. É, portanto, natural que haja retardatários e incapazes de compreender
certas coisas.
Muito
freqüentemente, além disso, os fatos novos, pouco conhecidos, inexplicados, são
vagos, complicados, de análise difícil, mal esclarecidos pelos que os
apresentam. Quantas dificuldades não teve o magnetismo humano a atravessar,
antes de atingir o estado de experimentação científica em que se acha atualmente
sob outros nomes! E quanto não foi ele explorado por charlatães que abusavam da
credulidade pública! E, nos fenômenos magnéticos, do mesmo modo que nos do
Espiritismo, quantas fraudes, superstições, infames mentiras, sem contar as
pessoas estúpidas que enganam “para se divertirem!” E de que maravilhosas
habilidades não são capazes os prestidigitadores! Pode-se, pois, em parte,
desculpar as reservas dos homens de ciência.
A recente
descoberta dos raios Roentgen, tão estranha e inacreditável em sua origem,
deveria esclarecer-nos sobre a exigüidade do campo de nossas observações
habituais. Ver através dos objetos opacos! no interior de um cofre fechado!
distinguir a ossatura de um braço, de uma perna, de um corpo, através da carne
e da vestimenta! Uma tal descoberta é, sem contradição, inteiramente contrária
às nossas habituais certezas. Este exemplo é seguramente um dos mais eloqüentes
em favor do axioma: é anticientífico afirmar que as realidades detêm-se no
limite dos nossos conhecimentos e das nossas observações.
E que dizer do
telefone, que transmite a palavra, não por meio de ondas sonoras, mas por um
movimento elétrico! Se pudéssemos falar, com o auxílio de um tubo, entre Paris
e Marselha, nossa voz empregaria três minutos e meio para chegar a seu destino
e passar-se-ia o mesmo com a do nosso interlocutor, de sorte que a resposta a
uma palavra emitida: “Alô! alô!” não nos chegaria senão ao cabo de sete minutos.
Ninguém pensa
nisso; entretanto, o telefone é tão absurdo como os raios X, sob o ponto de
vista da nossa concepção das coisas anteriores a estas descobertas.
Falamos das cinco
portas dos nossos conhecimentos: a visão, a audição, o olfato, o paladar e o
tato. Estas cinco portas dão-nos ainda pouco acesso ao mundo exterior, sobretudo
as três últimas. O olho e o ouvido vão bem mais longe, mas, de fato, é quase
somente a luz que põe o nosso espírito em comunicação com o Universo. Ora, que
é a luz? Uma modalidade de vibração do éter excessivamente rápida. A sensação
de luz é produzida sobre a nossa retina por vibrações que se prolongam desde
400 trilhões por segundo (extremidade vermelha do espectro luminoso) até 756
trilhões (extremidade violeta). Há muito tempo que foram essas vibrações
medidas com precisão. Tanto abaixo como acima desses números, há outras
vibrações do éter, não perceptíveis pelos nossos olhos. Para lá do vermelho
estão vibrações caloríficas obscuras. Depois do violeta acham-se vibrações
químicas actínicas, suscetíveis de serem fotografadas, igualmente obscuras.
Muitas outras existem que permanecem para nós desconhecidas. A estas
observações acrescentarei hoje, modificando-as e desenvolvendo-as, uma
comparação feita recentemente por sir William Crookes, a propósito da conexão
provável dos fenômenos do Universo e das lacunas que a nossa organização
terrestre apresenta em meio dessa conexão de fenômenos. Tomemos um pêndulo que
oscile no ar de segundo em segundo. Dobrando as oscilações desse pêndulo
obteremos a série seguinte:
Tempo
|
Nº de vibrações por segundo
|
Espectro
|
1º
2º
3º
4º
|
2
4
8
16
|
|
5º
6º
7º
8º
9º
10º
15º
|
32
64
128
256
512
1.024
32.768
|
Som
|
20º
25º
|
1.047.576
33.554.432
|
Desconhecido
|
30º
|
1.073.741.824
|
Eletricidade
|
35º
40º
45º
|
34.359.738.368
1.099.511.627.776
35.184.372.088.832
|
Desconhecido
|
48º
49º
50º
|
281.474.976.710.656
562.949.953.421.312
1.125.890.906.842.624
| |
55º
56º
57º
|
36.028.797.018.963.968
72.057.594.037.927.936
144.115.188.075.855.872
|
Desconhecido
|
58º
59º
60º
61º
|
288.230.376.151.711.744
576.460.752.303.423.488
1.152.921.504.606.846.976
2.305.843.009.213.693.952
|
Raios X
|
62º
63º
|
4.611.686.018.427.387.904
9.223.372.036.854.775.808
|
Desconhecido
|
No quinto tempo depois da unidade, a 32 vibrações
por segundo, entramos na região em que a vibração da atmosfera nos é revelada
sob a forma de som. Aí encontramos a
nota musical mais baixa. Se, entre os sons musicais, procurarmos um muito
grave, por exemplo, a oitava inferior do órgão, perceberemos que as sensações
elementares, ainda que formando um todo contínuo, o que é necessário para que o
som seja musical, permanecem não obstante distintas, até um certo grau. Quanto
mais baixo é o som, diz Helmholtz, tanto melhor distingue nele o ouvido as
ondulações sucessivas do ar.
Nos dez graus
seguintes, as vibrações por segundo elevam-se de 32 a 32.768; cada duplicação
reproduz a mesma nota, em sua oitava superior. O diapasão normal que reproduz a
nota lá vibra 435 vezes por segundo,
ou sejam, 870 vibrações duplas. O som mais agudo é produzido por cerca de
36.000 vibrações e aí termina a região do som para um ouvido humano comum. Provavelmente,
porém, certos animais a esse respeito mais bem dotados que nós, percebem sons
demasiado agudos para os nossos órgãos, isto é, sons cuja rapidez de vibrações
passa além desse limite.
Em seguida
chegamos a uma região em que a rapidez das vibrações aumenta celeremente, e o
meio vibratório não é mais a grosseira atmosfera, mas um meio infinitamente
sutil, “um ar mais divino”, chamado éter. Produzem-se aí vibrações de natureza
desconhecida.
A seguir vem a
região que se estende do 35º ao 45º grau, de 34.359 milhões a 35.184 bilhões de
vibrações por segundo. Ela nos é desconhecida:
ignoramos as funções dessas vibrações, mas que elas existam e se achem em ação
no Universo é difícil não admitir-se.
Aproximamo-nos
agora da região da luz onde se encontram as velocidades compreendidas entre a
48ª e 50ª ordem. A sensação de luz, isto é, as vibrações que transmitem
impressões visíveis, está compreendida entre os estreitos limites de cerca de
400 trilhões (luz vermelha) a 756 trilhões (luz violeta), o que não chega a
completar um grau.
Os fenômenos da
Natureza que se passam constantemente ao nosso redor realizam-se, ao demais,
sob a ação de forças invisíveis. O vapor d’água, cuja ação é assaz considerável
na climatologia, é invisível. O calor é invisível. A eletricidade é invisível.
Os raios químicos são invisíveis. O espectro solar, representando o conjunto
dos raios luminosos sensíveis à retina humana (os raios visíveis) é hoje
conhecido de todo o mundo. Se fizermos passar um raio de Sol através de um
prisma, obteremos à saída deste último uma faixa colorida estendendo-se do
vermelho ao violeta. Um grande número de raias o atravessam, sendo as principais
indicadas pelas letras de A a H; são linhas de absorção produzidas
pelas substâncias que ardem na atmosfera solar e pelo vapor d’água da atmosfera
terrestre. Conhecem-se atualmente milhares dessas raias.
Se se faz passar
um termômetro à esquerda do espectro visível, para lá do vermelho, vê-se que
ele sobe, constatando-se, portanto, que existem aí raios caloríficos invisíveis
para nós.
Se se coloca uma
placa fotográfica à direita do espectro, para além do violeta, vê-se que ela é
impressionada, o que demonstra a existência de raios químicos muito ativos,
invisíveis para nós. Observação importante: certos corpos invisíveis podem
tornar-se visíveis; assim o urânio e o sulfato de quinina tornam-se visíveis na
obscuridade sob as radiações ultravioletas.
Classificam-se
hoje todos esses raios pelo seu comprimento de onda: um determinado raio é o
espaço percorrido pela onda durante determinado período vibratório. Ainda que
os comprimentos de onda das radiações sejam de extrema pequenez, chega-se,
graças ao emprego dos crivos de difração, a determiná-los com uma grande
precisão. Ei-los:
Cor
|
Comprimento
de onda
(nm) *
|
Vibrações
(trilhões p/
segundo)
|
Vermelho extremo
|
734
|
400
|
Limite do vermelho e do alaranjado
|
647
|
490
|
Limite do alaranjado e do amarelo
|
587
|
558
|
Limite do amarelo e do verde
|
535
|
590
|
Limite do verde e do azul
|
492
|
596
|
Limite do azul e do índigo (anil)
|
456
|
675
|
Limite do índigo e do violeta
|
424
|
700
|
Violeta extremo
|
397
|
756
|
* nm –
nanômetro; equivale a um milionésimo de milímetro.
Porção do infravermelho invisível, calorífica.
Comprimento de onda: de 1940 a 734 nm.
Porção do ultravioleta invisível, química. Comprimento de onda:
de 397 a 295 nm.
O primeiro desses dois espectros invisíveis foi
determinado com grande precisão pelo astrônomo americano Langley, com o auxílio
do aparelho de sua invenção, chamado bolômetro.[v] É
nesta região invisível que se exerce a maior parte da energia solar. A parte
deste espectro já explorada é 16 vezes mais extensa que o espectro visível!
Por outro lado, o físico francês Edmond Becquerel há muito
que fotografou o espectro químico.[vi]
Esse espectro, cujo estudo foi continuado depois, é cerca de duas vezes mais
extenso que o espectro visível.
Deixando a região do espectro solar estudado, chegamos à que
é para os nossos sentidos e meios de pesquisa uma outra região desconhecida e a funções de que apenas começamos a
suspeitar. É provável que se chegue a encontrar os raios Roentgen entre o 58º e
o 61º graus, lá onde as vibrações vão de 288.230.376.151.711.744 a
2.305.843.009.213.693.952, por segundo, ou mesmo mais.
Vê-se que nesta série há diversas grandes lacunas ou regiões
desconhecidas, sobre as quais nada absolutamente sabemos. Quem poderia dizer
que estas vibrações não desempenham um papel importante na economia geral do
Universo?
Afinal, não existem vibrações ainda mais rápidas do que essas
em que se deteve a série precedente?
Vivemos em um espaço a três dimensões. Seres que vivessem em
um espaço a duas dimensões, na superfície de um círculo, por exemplo, em um
plano, não conheceriam senão a geometria a duas dimensões, não poderiam passar
por cima da linha que limita um círculo ou um quadrado, seriam aprisionados por
uma circunferência, sem possibilidade de saírem dela. Dai-lhes uma terceira
dimensão, com a faculdade de se moverem na mesma: eles passarão muito
simplesmente por cima da linha, sem rompê-la, sem mesmo precisarem tocá-la. As
seis superfícies de uma peça fechada (4 paredes, assoalho e teto) nos
aprisionam; suponhamos, porém, uma quarta dimensão e sejamos dotados da
faculdade de viver nela: sairemos de nossa prisão tão facilmente como um homem
passa acima de uma linha traçada sobre o solo.
Do mesmo modo que um ser organizado para mover-se unicamente
em um plano (n. 2), não poderia conceber o espaço cúbico (n. 3), também não
podemos conceber esse hiperespaço (n. 4), a que nos acabamos de referir; mas
nem por isso, entretanto, estamos autorizados a declarar que ele não existe.
Há, mesmo na vida terrestre, certas faculdades inexplicadas
para o homem, certos sentidos ignorados.
De que modo conseguem os pombos viajores e as andorinhas de
novo encontrar os seus ninhos? De que maneira pode o cão voltar a sua casa, a
muitas centenas de quilômetros de distância, por um caminho que jamais
percorreu? Como pode a víbora conseguir a descida de um pássaro à sua goela e
de que modo procede o lagarto para atrair a si a borboleta fascinada? etc.,
etc. Mostrei, noutro lugar, que os habitantes de outros mundos devem ser
dotados de sentidos muito diversos dos nossos.
Nada conhecemos de absoluto.
Todos os nossos juízos são relativos, por conseguinte imperfeitos e incompletos.
A sabedoria científica consiste, pois, em sermos muito
reservados em nossas negativas. Temos o direito de ser modestos. “A dúvida é
uma prova de modéstia, diremos com Arago, e raramente ela tem criado obstáculos
aos progressos das ciências. Não se poderia
dizer o mesmo da incredulidade.”
Há ainda grande número de fatos inexplicados, que pertencem
ao domínio do desconhecido. Os fenômenos de que nos vamos ocupar são deste
número. A telepatia, ou sensação a distância; as aparições ou manifestações de
moribundos; a transmissão do pensamento; a visão em sonho, em estado sonambúlico,
sem o concurso dos olhos, de paisagens, cidades, monumentos; a presciência ou
premonição de um acontecimento próximo; a previsão do futuro, os avisos, os
pressentimentos; certos casos magnéticos extraordinários; os ditados inconscientes
por meio de pancadas nas mesas; certos ruídos inexplicados, as casas mal
assombradas; os levantamentos ou levitações contrárias às da gravidade; os
movimentos e transportes de objetos sem contato; certos fatos que lembram
materializações de forças (o que parece absurdo); as manifestações aparentes ou
reais, de almas desencarnadas ou de espíritos de toda ordem; e muitos outros
fenômenos estranhos e atualmente inexplicáveis, merecem nossa curiosidade e
nossa atenção científica.
Convençamo-nos, ao demais, que tudo aquilo que podemos
observar e estudar é natural, e que devemos examinar todos os fatos
tranqüilamente, cientificamente, sem preocupação de mistério, sem precipitações
nem misticismos, como se se tratasse de astronomia, de física ou de fisiologia.
tudo está na natureza, tanto o desconhecido como o conhecido, e o sobrenatural
não existe. Esta é uma palavra vazia de sentido.[vii]
Os eclipses, os cometas, as estrelas temporárias eram vistos como
sobrenaturais, como manifestações da cólera divina, antes de se ter o
conhecimento das leis que os regem. Qualifica-se muitas vezes de sobrenatural o
que é maravilhoso, extraordinário, inexplicado. Cumpre dizer, muito
simplesmente, desconhecido.
Os críticos que quisessem ver nesta obra um retorno aos
tempos da superstição seriam vítimas de um erro grosseiro. Trata-se, pelo
contrário, de análise e de exame.
Aqueles que dizem: “Eu, crer nesses impossíveis, jamais! Não
creio senão nas leis da Natureza e estas leis são conhecidas”, parecem-se com os antigos geógrafos simplórios que
escreviam sobre seus mapas-mundi, no local das colunas de Hércules (estreito de
Gibraltar): Hic Deficit Orbis (“aqui
acaba o mundo”), sem desconfiarem de que neste espaço ocidental, desconhecido e
vazio, há duas vezes mais terras do que as que esses hábeis geógrafos conheciam.
Todos os nossos conhecimentos humanos poderiam ser
representados simbolicamente por uma pequena ilha, uma ilha minúscula, rodeada
por um oceano sem limites.
Resta-nos ainda muito, muito
a aprender.
Camille Flammarion
O Desconhecido
e os Problemas
Psíquicos
[i] Pode-se ler mais adiante (Capítulo VIII,
caso XLIII), o Relatório Oficial escrito a respeito dessa memorável operação
cirúrgica. Foi ela realizada em 12 de abril de 1829.
[ii] Assisti, com a idade de seis anos, à
construção da linha do caminho de ferro Paris-Lião-Mediterrâneo, na secção de
Tonnerre a Dijon e, com a idade de 12 anos, à de Paris e Mulhouse, na secção de
Chaumont e Chalindrey, e me lembro, como se fosse ontem, das conversações que
se entabulavam em torno de mim. Ninguém tinha uma intuição dos desenvolvimentos
que as redes deviam tomar em menos de meio século e, longe de pensarem em ter
as estações ao seu alcance, todos estavam dispostos a afastá-las o mais possível,
pelo menos em Langres, onde comecei meus estudos e na minha aldeia de
Montigny-le-Roi. Notadamente nestes dois pontos, as gares se acham tão isoladas
e tão afastadas quanto possível dos centros comerciais de cada região.
[iv] A descarga de uma garrafa de Leyde através
de uma bobina de fios muito finos e longos dá origem a vibrações
eletromagnéticas, cujos períodos determinados por Helmholtz (1869) e após ele
por muitos outros observadores, podem ser compreendidos entre 1.000 e 10.000
por segundo para os aparelhos usuais. Em 1888, Hertz conseguiu reproduzir
vibrações da mesma natureza, de 100.000 por segundo, bem como estudar-lhes o
modo de propagação. Propagando-se essas vibrações no vácuo (éter), o que as distingue
das vibrações sonoras que só se propagam na matéria ordinária (ar, água,
madeira, etc.), é racional considerá-las como de natureza análoga às vibrações
do calor radiante, de acordo com as idéias emitidas por Maxwell desde 1867.
Vide sir W. Thomson, Conferências,
pág. 189.
[v] Boletim
da Sociedade Astronômica de França, ano de 1895, pág. 110. Vide também o do
ano de 1897, pág. 307.
[vii] Permito-me sobre este ponto remeter o leitor
à minha obra Deus na Natureza.
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