O "MASCARA (cásvara) -DE-FERRO"
Divaldo Pereira Franco
Até onde vai a minha lembrança eu sempre
detectava a presença de uma Entidade, um sacerdote romano, respeitável, com
ares adversários contra mim, numa atitude agressiva, ameaçando-me, a princípio
de forma educada e depois com muita rispidez.
E prometendo que, se eu não seguisse as
suas diretrizes ele ia terminar por me destruir. Mas eu era muito jovem para
entender essas sutilezas da mediunidade. Passaram-se os anos, e quando me
tornei espírita, começando a exercer a mediunidade, fui constatando, a pouco e
pouco, que ser médium não é uma viagem ao país da fantasia. E uma tarefa muito
séria e de alta responsabilidade.
Nesse ínterim, a Entidade começou a
dar-me uma assistência negativa, pois, à medida que se passava o tempo, mais eu
me afeiçoava ao contexto do Espiritismo, de tal forma que a sua atuação
tornou-se muito dolorosa.
Nos momentos difíceis da minha vida ele
esteve presente. No rol das minhas lembranças, vem-me à mente uma tentativa
malograda de suicídio, quando eu contava dezenove anos, por afogamento, no mar.
Numa noite - eu tinha certas visões desagradáveis então, sofri um desses
fenômenos e ouvi uma voz me chamando e me hipnotizando. Dizia que a solução
para mim - a única - era destruir o corpo, porque, na Terra, eu sofria muito,
e, se destruísse o corpo, iria ser plenamente feliz, partiria para o Mundo
Espiritual, onde estavam as pessoas que me amavam, aquelas que estão vinculadas
a mim, e que já era tempo de me libertar dessa canga difícil, que era a vida
física. Morávamos perto da praia. Eu saltei a janela e fui sendo arrastado pela
indução hipnótica em direção ao mar. Era madrugada e não havia ninguém por
perto.
Nilson, que é muito vigilante, percebeu
o que estava acontecendo e me acompanhou. Notou, quando eu me lancei mar a
dentro. As primeiras ondas molharam-me
os pés, mas eu prossegui. (Até hoje eu não sei nadar). Fui entrando sob aquele
fascínio, até que as ondas bateram no meu rosto, provocando-me um choque e
despertando-me. Ao dar-me conta da situação, fiquei desesperado: ver-me com roupa
dentro do mar, de pijama e sem saber o que havia acontecido. Nilson estava
próximo, orando, porque ele conhecia a interferência Divina, que nunca falta.
Nesse exato momento, quando ele me viu a debater e gritar, atirou-se às ondas e
me resgatou, trazendo-me para a praia.
Quando eu ia saindo das águas, amparado
por ele, vi a Entidade, com aspecto dominador, dizendo que me mataria, não
adiantava recalcitrar: ou eu abandonava o meu compromisso recebido com o
Espiritismo ou ele me destruiria. Repetia que eu tinha deveres para com a sua
antiga doutrina e que a estava conspurcando; que o meu labor era com a religião
tradicional; que não tinha o direito de me desviar dela, fosse qual fosse a
justificativa. Passaram-se os anos. Aquele foi um período amargo da minha vida;
o dos testemunhos.
Esse Espírito criou-me injunções, as
mais dolorosas. Uma delas ocorreu à época em que eu ainda estudava. Sempre tive
muita vontade de estudar e havia feito o chamado artigo 100, que corresponderia
hoje ao supletivo do 1.° grau, e estava preparando-me para fazer o supletivo do
2.° grau, que naquele tempo se chamava artigo 91.
Em certa ocasião, quando eu ia a uma
aula, depois do expediente no IPA SE, caminhava tranqüilamente pela rua da
Misericórdia, que é muito movimentada, quando alguém, subitamente, me puxou
pelas costas. Voltei-me, julgando ser um colega. Recebi um golpe, um murro no
rosto, que me lançou sobre uma vitrine de uma joalheria, provocando um certo
pânico e um grande susto. Juntaram-se algumas pessoas, eu tive uns cortes, mas,
quando caí, depois que me voltei de frente para o agressor, ele disse: "-
Perdoe-me, desculpe-me! Eu tive a impressão de que você era o indivíduo que
anda perturbando a paz de minha mulher e quis puni-lo. Você me desculpe!"
Houve uma confusão momentânea, e enquanto alguém me ajudava a levantar, no meio
daqueles rostos, eu o vi. Como de outras oportunidades, ameaçou-me:
- Vou humilhar-te de tal forma, tantas
vezes, que não terás outra alternativa, senão a de se render, ou te matarei. Eu
residia muito distante do centro da cidade, e sempre me sugestionei que
qualquer coisa que me sucedesse a minha primeira providência seria a de voltar
para casa, imediatamente.
Como é natural, fiquei muito aturdido,
desembaracei-me das pessoas, enxuguei o rosto com o lenço e saí. Desci uma rua
do Pelourinho, em direção da Cidade Baixa, mas, estava tão atordoado que me
perdi, e, por passar seguidamente pela porta onde um amigo tinha uma loja de
calçados, este me viu e notou a minha palidez. Chamou-me, conversou comigo, e,
só nesta hora, voltei à normalidade, seguindo, então, para casa. Esta bofetada
me marcou muito a vida, porque vi como os Espíritos podem, em certas ocasiões,
armar um indivíduo para cometer um crime contra aqueles a quem detestam, desde
que o outro ou aqueles dêem margem, entrando no processo de sintonia.
Eu orava, tinha a vida normal de uma
pessoa que procura manter a dignidade, já trabalhava na mediunidade, na
pregação, mas isto lhe açulava, cada vez mais, o ódio. Posteriormente, em 1960,
no dia 13 de janeiro, eu estava em Uberaba. Havia sido orador de uma turma de
médicos, e a bondade de Chico Xavier sempre me agasalhou em seu coração
generoso. Naquele tempo, Chico Xavier participava das reuniões da Comunhão
Espírita Cristã, em Uberaba, e no grupo de desobsessão, eu tinha permissão de
tomar parte como se fosse membro que residisse fora. Sempre que estava na
cidade, naquele dia - quarta-feira - eu me integrava na sessão. Fui à reunião,
participando dos trabalhos habituais, e vários Espíritos se comunicaram através
dos diversos médiuns presentes.
O momento culminante, porém, foi quando
esse mesmo Espírito que me vinha perseguindo se incorporou no médium Chico
Xavier e, num gesto de quem mete a mão no bolso e tira algo, me disse como se
estivesse a ler anotações: - Estou aqui com a sua ficha. Você se lembra do ano
de 1955 quando foi a Apucarana, por primeira, vez?
Eu não me lembrava. - Pois vou
refrescar-lhe a memória. E começou a citar fatos (que eu passei a recordar),
que haviam sucedido naquela oportunidade, na cidade citada do norte do Paraná.
- Recorda-se - prosseguiu, citando outro fato - do dia 14 de julho do ano
passado, quando você estava no Rio de Janeiro, à rua tal, número tanto ,
apartamento número tal?
Eu me recordei de um incidente muito
desagradável, quando uma pessoa que estava dialogando comigo, sem qualquer
motivo aparente, foi tomada de cólera e provocou uma discussão, que eu procurei
não dar prosseguimento, sofrendo então uma agressão de forma tão inesperada,
que me chocou profundamente.
Guardei a data por ser o dia da
libertação, da Queda da Bastilha.
A pessoa foi investindo contra mim,
enquanto eu fui recuando até à janela da sala, já não havendo mais para onde
afastar-me e sentindo nos olhos da criatura como ela estava possessa, com
desejo de atirar-me de lá de cima era o 12º andar do edifício.
Com muita habilidade, em silêncio, eu
fui saindo dali, desviando-me, e evadi-me do lugar, permanecendo com aquela
impressão terrível, que por pouco não me prejudicou a conferência nessa noite,
no Colégio Militar, na Tijuca. O Espírito dizia com rudeza:
- Fui eu quem incorporou essa pessoa
para destruir-lhe a vida. Eu sei que não destruirei, mas aniquilarei o seu
corpo e ficará do nosso lado. Eu venho hoje aqui para termos um acerto. O que é
impressionante - e grave - é que o Espírito falava com autoridade sobre mim.
Apesar do ódio que ele destilava, eu sentia respeito e consideração, não
experimentando rancor.
- Você se comprometeu conosco -
afirmava, exaltado -, a chamada Igreja militante, para engrossar as fileiras do
clero, quando retornasse à Terra, e trai-nos vergonhosamente, indo participar
de uma doutrina abjeta. Passou a atacar o Espiritismo com muita nobreza de
linguagem, mas com muita agressividade emocional, utilizando-se de sofismas
muito bem construídos , tais como:
- A minha reação contra o Espiritismo
tem fundamento, porque o Espiritismo está barateando a mediunidade, o carisma,
a graça, o dom, deixando que esta concessão seja colocada no ridículo de um
populacho incapaz de a compreender.
Eu retruquei, algo tímido: - Meu irmão,
o senhor é a maior prova da legitimidade, da justeza do fenômeno espírita,
porque o senhor está incorporado num médium, conversando comigo. - Este
manequim de quem me utilizo - respondeu, prontamente -, é um instrumento dócil,
ele tem feito jus a ser veículo dos Espíritos, porém, o Espiritismo barateia a
mediunidade. Como você consideraria, se eu, um sacerdote da respeitável
religião, fosse a um picadeiro de circo para distribuir a sagrada eucaristia,
entre palhaços, feras e o povo que ali foi para divertir-se? A eucaristia, para
nós, é o momento culminante da união com Deus.
Com os senhores, os espíritas, podem
atrever-se a apresentar esta eucaristia no circo das misérias humanas? Bem se
vê que era um sofisma, mas, aparentemente, muito bem colocado, por que nós não
barateamos a mediunidade, nós não a vulgarizamos, apenas repetimos Jesus,
trazemos o fenômeno mediúnico, ou melhor, explicamos o fenômeno mediúnico a fim
de facilitar as pessoas a se encontrarem consigo mesmas. Ao mesmo tempo, é a
prova robusta da imortalidade da alma, preconizada por todas as religiões.
Todavia, ele usou de um outro argumento:
- Quando o Espiritismo apareceu, a
Igreja Romana podia ser comparada a um holofote que projetava imensa claridade
no céu enquanto ele era uma talisca de fósforo acesa que se abria na treva,
incapaz de competir com o poder e a opulência da Igreja. Que vemos agora?
Observamos que o Espiritismo se transforma em uma constelação de astros a
iluminar os céus e a Igreja vai apagando a sua claridade. - Mas, meu irmão, a
culpa não é do Espiritismo, o senhor me desculpe. - Você, porém, é um desses
responsáveis, porque anda com o archote da fé, de um lado para outro, buscando
iluminar consciências, incendiando tudo à sua passagem. Vou dar-lhe uma
determinação: retorne a Salvador, procure o sacerdote fulano de tal (cujo nome
não devo declinar porque ainda está encarnado), na igreja tal, com quem
mantenho contato direto e apresente-se para confessar-se, arrepender-se, tomar
hábito e servir à causa da Verdade. - Eu não posso, o meu compromisso é com
Jesus. Eu sou um empregado a serviço de uma Nova Era. Não compreendo por que o
irmão se volta contra mim.
O irmão deveria voltar-se contra Aquele
que me dirige; porque, se o senhor se voltar contra Ele, Ele me liberta. Eu sou
escravo, liberte-me dEle e eu passarei de mão, com muito prazer, se for isso
que aconteça. Mas se o senhor não me libertar dEle, eu não posso, não tenho
como me evadir da presença de Jesus.
- Não, contra Ele eu não posso -
retrucou - mas, contra você eu posso .
Farei tudo por persuadi-lo.
Utilizar-me-ei da bondade, da oferenda de recursos e valores para você triunfar
no mundo.
Mas, se você se obstinar, veja bem (e
utilizou de outro sofisma):
O pastor está conduzindo as ovelhas, uma
delas tresmalha ou se desvia; ele a chama e vai atrás. Se não a alcança, usa o
bordão e ela volta ou morre.
Mas ele não a deixa, a não ser que a
perca em definitivo. E o que farei contigo.
Ou retorna para o nosso seio ou lhe
bateremos tanto de bordão, eu e o meu povo, que, aonde quer que vá, a
humilhação, o desrespeito e o sofrimento lhe estarão esperando. E me fez um
prognóstico sombrio, que se concretizou, em grande parte, pelo menos:
- Ou aceita a minha voz - é o meu
ultimato - ou aonde for pregar a sua malsinada Doutrina, defrontará com a minha
presença, sendo desmoralizado pelos seus correligionários e confrades.
Não terá coragem de abrir a boca para
coisa nenhuma.
O momento é hoje e se você não voltar ao
nosso compromisso, prepare-se para testemunhar se é verdadeira a sua integração
nesse trabalho ou não.
A comunicação alongou-se.
Ele declinou o nome: J.T.S. A verdade é
que, dois anos depois, exatamente, eu fui convidado a um pesa do testemunho.
Por onde quer que eu haja passado,
durante vários anos e até hoje ainda, a partir do dia 10 de junho de 1962 as
provações me aguardavam: a ironia, a zombaria, o descrédito e tantas coisas que
nos levam ao sofrimento, chegavam e se avizinhavam rudes.
Todavia, não desanimei.
Anos depois, mesmo continuando as
provas, as lutas e as dores, ele me reapareceu.
Um esclarecimento: comecei a chamar esse
Espírito pelo nome de o "máscara-de-ferro".
Eu havia assistido um filme, fazia
muitos anos, sob esta epígrafe.
No dia da bofetada, na rua da
Misericórdia, quando cheguei à casa e entrei discretamente para que os meus
pais e a minha irmã não me vissem, segui ao meu quarto.
Ali, ele me apareceu e o seu rosto me
fazia lembrar a personagem do filme com a "máscara-de-ferro", só que
o ferro estava como que incandescente.
Aquilo me impressionou de forma tal, que
eu, jovem ainda, com algum atavismo clericalista, ajoelhei-me aos seus pés e
lhe pedi perdão. - O senhor me odeia tanto - disse-lhe - que deve ter um motivo
muito forte para isto; então, perdoe-me. Dê-me uma oportunidade de reparação,
eu já não sou aquela mesma pessoa... - Você mudou apenas de roupa, mas é a
mesma pessoa e eu o matarei. Várias vezes ele me apareceu com aquela expressão
terrível. Anos depois, por volta de 1976, portanto, quase trinta anos de
combate diário, de assistência quase diária, ele retornou e falou-me: - Vou
deixá-lo por um período. Você não me convence, porque eu o conheço, sei das
suas dívidas; mas você me venceu, temporariamente, pela paciência, pela
humildade, pela abnegação, pelo trabalho que vem desenvolvendo na sua
comunidade e em si mesmo.
Eu fiquei muito feliz, é claro.
Passaram-se os anos. Certo dia, em circunstância muito dolorosa, chegou à
"Mansão do Caminho" uma criança, e, como era natural, nós estávamos
impossibilitados de receber novos candidatos por falta de espaço e de recursos.
Vendo a criança num tal estado de abandono, de debilidade orgânica, de
sofrimento e miséria, comovi-me e me lembrei de Jesus. Perguntei-me, mentalmente:
Como faria Jesus em uma circunstância destas? A consciência me disse que Ele a
receberia.
Foi o que eu fiz. Imediatamente
convocamos os nossos colaboradores residentes e a criança foi encaminhada a uma
das casas. Nesta noite, apareceu-me aquele Espírito e me informou, emocionado:
- Agora você me convenceu. Porque esta, a quem acaba de receber, é a minha mãe,
que está de volta ao corpo. Eu tenho que amar a quem vai ajudá-la na sua tarefa
de redenção. Ensine-me, agora, o que fazer, para a prender a amar Jesus, na
visão correta, e, se Deus me der vida, poder retornar e vir ainda receber o
afago das suas mãos nessa sua casa...
Encerrava-se, assim, o capítulo do
"máscara-de-ferro", de uma forma sublime, demonstrando a excelência
do amor e o poder da caridade. Ele continua aparecendo-me, hoje, menos hostil,
quase afável; já participa das nossas reuniões doutrinárias e mediúnicas, e, de
vez em quando, traz outros correligionários, outros companheiros que têm o
mesmo problema, para receberem a ajuda em nossa casa.
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