ENTREVISTA
Miguel Chalub
"O homem
não aceita mais ficar triste"
Uma das maiores autoridades
brasileiras em depressão, o médico diz que, hoje, qualquer tristeza é tratada
como doença psiquiátrica. E que prefere-se recorrer aos remédios a encarar o
sofrimento
Adriana Prado
RECEITA
Chalub afirma que muitos
médicos se rendem aos laboratóriosfarmacêuticos e Indicam antidepressivos sem
necessidade. A Organização Mundial da Saúde (OMS) prevê que a
depressão será a doença mais comum do mundo em 2030 – atualmente, 121 milhões
de pessoas sofrem do problema. Para o psiquiatra mineiro Miguel Chalub,
70 anos, há um certo exagero nessas contas. Ele defende que tanto os pacientes
quanto os médicos estão confundindo tristeza com depressão. “Não se pode mais
ficar triste, entediado, porque isso é imediatamente transformado em
depressão”, disse em entrevista à ISTOÉ.
Hoje, brigar com o marido,
sair do emprego, qualquer motivo é válido para se dizer deprimido. Mas o
sofrimento não significa depressão"
Professor das universidades
Federal (UFRJ) e Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), ele afirma que os
psiquiatras são os que menos receitam antidepressivos, porque estão mais
preparados para reconhecer as diferenças entre a “tristeza normal e a
patológica”. Mas o despreparo dos demais especialistas não seria o único motivo
do que o médico chama de “medicalização da tristeza”. Muitos profissionais se
deixam levar pelo lobby da indústria farmacêutica. “Os laboratórios
pagam passagens, almoços, dão brindes. Você, sem perceber, começa a fazer esse
jogo.”
Istoé - Por que
tantas previsões alarmantes sobre o aumento da depressão no mundo?
Miguel Chalub - Porque estão
sendo computadas situações humanas de luto, de tristeza, de aborrecimento, de
tédio. Não se pode mais ficar entediado, aborrecido, chateado, porque isso é
imediatamente transformado em depressão. É a medicalização de uma condição
humana, a tristeza. É transformar um sentimento normal, que todos nós devemos
ter, dependendo das situações, numa entidade patológica.
Istoé - Por que isso
aconteceu?
Miguel Chalub - A palavra
depressão passou a ter dois sentidos. Tradicionalmente, designava um estado
mental específico, quando a pessoa estava triste, mas com uma tristeza
profunda, vivida no corpo. A própria postura mostrava isso. Ela não ficava
ereta, como se tivesse um peso sobre as costas. E havia também os sintomas
físicos. O aparelho digestivo não funcionava bem, a pele ficava mais espessa.
Mas, nos últimos anos, a palavra depressão começou a ser usada para designar um
estado humano normal, o da tristeza. Há situações em que, se não ficarmos
tristes, é um problema – como quando se perde um ente querido. Mas o
homem não aceita mais sentir coisas que são humanas, como a tristeza.
Istoé - A que se deve
essa mudança?
Miguel Chalub - Primeiro, a
uma busca pela felicidade. Qualquer coisa que possa atrapalhá-la tem que ser
chamada de doença, porque, aí, justifica: “Eu não sou feliz porque estou
doente, não porque fiz opções erradas.” Dou uma desculpa a mim mesmo. Segundo,
à tendência de achar que o remédio vai corrigir qualquer distorção humana. É a
busca pela pílula da felicidade. Eu não preciso mais ser infeliz.
Istoé - O que
diferencia a tristeza normal da patológica?Miguel Chalub - A intensidade. A
tristeza patológica é muito mais intensa. A normal é um estado de espírito.
Além disso, a patológica é longa.
Istoé - Quanto tempo
é normal ficar triste após a morte de um ente querido, por exemplo?
Miguel Chalub - Não dá para
estabelecer um tempo. O importante é que a tristeza vai diminuindo. Se
for assim, é normal. A pessoa tem que ir retomando sua vida. Os próprios
mecanismos sociais ajudam nisso. Por que tem missa de sétimo dia? Para ajudar a
pessoa a ir se desonerando daquilo.
Istoé - Quais são os
sintomas físicos ligados à depressão?
Miguel Chalub - Aperto no
peito, dificuldade de se movimentar, a pessoa só quer ficar deitada,
dificuldade de cuidar de si próprio, da higiene corporal. Na tristeza normal,
pode acontecer isso por um ou dois dias, mas, depois, passa. Na patológica,
fica nas entranhas.
Istoé - Ainda há
preconceito com quem tem depressão?
Miguel Chalub - Não. É o
contrário. A vulgarização da depressão diminuiu o preconceito, mas criou outro
problema, que é essa doença inexistente. Antes, a pessoa com depressão era
vista como fraca. Hoje, as pessoas dizem que estão deprimidas com a maior naturalidade.
Não se fica mais triste. Se brigar com o marido, se sair do emprego, qualquer
motivo é válido para se dizer deprimido. Pode até ser que alguém fique
realmente com depressão, mas, em geral, fica-se triste. O sofrimento não
significa depressão. E não justifica o uso de medicamentos.
Istoé - Os médicos
não deveriam entender este processo?
Miguel Chalub - Os médicos não
estão isentos da ideologia vigente. O que acontece é: você vem ao meu
consultório. Eu acho que você não está deprimido, que está só passando por uma
situação difícil. Então, proponho que você faça um acompanhamento
psicoterápico. Você não fica satisfeito e procura outro médico, que receita um
antidepressivo. Ele é o moderno, eu sou o bobão. Para não ser o bobão, eu
receito um antidepressivo logo. É uma coisa inconsciente.
Istoé - Inconsciente?
Miguel Chalub - Os
médicos querem corresponder à demanda. Senão, o paciente sairá achando que não
foi bem atendido. Receitando um antidepressivo, eles correspondem à demanda,
porque a pessoa quer ser enquadrada como deprimida. Mas há a questão dos
laboratórios. Eles bombardeiam os médicos.
Istoé - A ponto de
influenciar o comportamento deles?
Miguel Chalub - Se for um
médico com boa formação em psiquiatria, mesmo que não seja psiquiatra, ele
saberá rejeitar isso, mas outros não conseguem. Eles se baseiam nos folhetos do
laboratório. Não é por má-fé. Os laboratórios proporcionam muitas coisas. Pagam
passagens, almoços, dão brindes. O médico, sem perceber, começa a fazer o jogo.
Porque me pagaram uma passagem aérea ou me deram um laptop, acabo receitando o
que eles estão querendo.
Istoé - O médico se
vende?
Miguel Chalub - Sim.
Por isso é que há uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
proibindo os laboratórios de dar brindes aos médicos. Nenhum laboratório
suborna médico, não que eu saiba, nem vai chegar aqui e dizer: “Se você
receitar meu remédio, vou lhe dar uma mensalidade.” Mas eles fazem esse tipo de
coisa, que é subliminar. O médico acaba tão envolvido quanto se estivesse
recebendo um suborno realmente.
Istoé - Esse lobby é
capaz de fazer um médico receitar certo remédio?
Miguel Chalub - Aí é a demanda
e a lei do menor esforço. Se o paciente chegar se queixando de insônia, por
exemplo, o que o médico deveria fazer era ensiná-lo como dormir. Ou seja,
aconselhar a tomar um banho morno, um copo de leite morno, por exemplo. Mas é
mais fácil, tanto para o paciente quanto para o médico, receitar um remédio
para dormir.
Istoé - Os demais
especialistas também receitam remédios psiquiátricos, não?
Miguel Chalub - Quem mais
receita antidepressivos não são os psiquiatras, são os demais especialistas. Os
psiquiatras têm uma formação para perceber que primeiro é preciso ajudar a
pessoa a entender o que está se passando com ela e depois, se for uma depressão
mesmo, medicar. Agora, os outros, não querem ouvir. O paciente diz: “Estou triste.”
O médico responde: “Pois não”, e receita o remédio. Brinco dizendo o seguinte:
se você for a um clínico, relate só o problema clínico. Dor aqui, dor ali. Não
fale que está chateado, senão vai sair com um antidepressivo. É algo que
precisamos denunciar.
Istoé - Os
psiquiatras deveriam ser os únicos autorizados a receitar esse tipo de
medicamento?
Miguel Chalub - Não acho que
seja motivo para isso. Os outros especialistas têm capacidade de receitar,
desde que não entrem nessa falácia, nesse engodo.
Istoé - Mas os demais
especialistas estão capacitados para receitar essas drogas?
Miguel Chalub - Em geral, não.
Istoé - É comum o
paciente chegar ao consultório com um “diagnóstico” pronto?
Miguel Chalub - É muito comum.
Uma vez chegou um paciente aqui que se apresentou assim: “João da
Silva, bipolar.” Isso é uma apresentação que se faça? Quase
respondi: “Miguel Chalub, unipolar.” É uma distorção muito
séria.
Istoé - O acesso à
informação, nesse sentido, tem um lado ruim?
Miguel Chalub - A internet é
uma faca de dois gumes. É bom que a pessoa se informe. A época em que o médico
era o senhor absoluto acabou. Mas a informação via Google ainda é precária.
Muitas vezes, a depressão, por exemplo, é ansiedade. Mas as pessoas não querem
conviver com a ansiedade, que é uma coisa desagradável, mas que também faz
parte da nossa humanidade. Tenho uma paciente que disse: “Ando com um
ansiolítico na bolsa. Saí de casa, me aborreci, coloco ele para dentro.” Então
é isso? Se alguém me fala algo desagradável, eu tomo um ansiolítico? Isso é uma
verdadeira amortização das coisas.
Istoé - O que causa a
depressão?
Miguel Chalub - Esse é um dos
grandes mistérios da medicina. A gente não sabe por que as pessoas ficam
deprimidas. O mecanismo é conhecido, está ligado a uma substância chamada
serotonina, mas o que o desencadeia, não sabemos. Há teorias, ligadas à
infância, a perdas muito precoces, verdadeiras ou até imaginárias – como a
criança que fica aterrorizada achando que vai perder os pais. As raízes da
depressão estão na infância. Os acontecimentos atuais não levam à depressão
verdadeira, só muito raramente. Justamente o contrário do que se imagina. Mas
mexer na infância é muito doloroso. Não tem remédio para isso. Precisa de
terapia, de análise, mas as pessoas não querem fazer, não querem mexer nas
feridas. Então é melhor colocar um esparadrapo, para não ficar doendo, e
pronto. É a solução mais fácil.
Istoé - O
antidepressivo é sempre necessário contra a depressão?
Miguel Chalub - Quando é
depressão mesmo, tem que ter remédio.
Istoé - Há quem diga
que hoje a moda é ter um psiquiatra, não um analista. O que sr. acha disso?
Miguel Chalub - As
pessoas estão desamparadas. Desamparo é uma condição humana, mas temos que
enfrentá-lo, assim como o fracasso, a solidão, o isolamento. Não buscar
psiquiatras e remédios. Em algum momento, isso pode ficar tão sério,
tão agudo, que a pessoa pode precisar de uma ajuda, mas para que a
ensinem a enfrentar a situação. Ensina-me a viver, como no filme. Não é me dar
pílulas, para eu ficar amortecido.
Istoé - O que é
felicidade para o sr.?
Miguel Chalub
- A OMS tem uma definição de saúde muito curiosa: a saúde é um completo
estado de bem-estar físico, mental e social. Essa é a definição de
felicidade, não de saúde.Felicidade, para mim, é estar
bem consigo mesmo e com o outro. Estar bem consigo mesmo é também aceitar
limitações, sofrimento, incompetências, fracassos. Ou seja, felicidade também é
ficar triste de vez em quando.
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