sábado, 5 de dezembro de 2015


Nas Entrelinhas da História

 

GUSTAVO G. FRÓES

 
Saulo de Tarso, o jovem Doutor da Lei, a promessa de continuidade do orgulho da raça, deixa Jerusalém em busca de uma casinha florida da estrada de Jope onde uma jovem doce e bela enchia o seu coração dos mais sublimes sentimentos. Abigail era a consumação de seus ideais de moço probo e honrado, retribuindo-lhe as esperanças com as promessas de um futuro venturoso.

Somente um fato se interpunha entre o jovem par e a felicidade total: a situação de Jeziel, irmão de Abigail, injustamente condenado à escravidão e enviado às galés, tendo o destino ignorado.

Percebendo o véu de tristeza no semblante da companheira naquela tarde, quando estavam juntos aos canteiros de flores orientais do pomar, Saulo questiona Abigail sobre sua tristeza.

Após explicar que aguarda notícias de Corinto sobre o seu irmão, de um amigo de Zacarias, Abigail pede a Saulo:

“- Ouve, Saulo: Se Jeziel ainda estiver preso, prometes-me teu auxílio em seu favor? Teus prestigiosos amigos de Jerusalém poderão intervir para libertá-lo, junto do Procônsul da Acaia! Quem sabe? Minhas esperanças, agora, resumem-se exclusivamente em ti.

Ele tomou-lhe a mão e replicou enternecido:

- Farei tudo por ele”. *

Estava sendo sincero. Realmente ansiava por atender aos reclamos de Abigail, trazendo-lhe o irmão querido a quem presumia ser um verdadeiro santo, que certamente lhe abençoaria a união.

Eles não poderiam, de forma alguma, imaginar que, apenas a algumas semanas Jeziel fora deixado em Jope, em estado lastimável, pela intervenção caridosa do patrício Sérgio Paulo que agradecido pela sua dedicação ainda lhe deixa uma bolsa de moedas.

Ao se ver assaltado e prestes a ser assassinado, Jeziel convence a seu agressor, Irineu de Crotona, a deixá-lo vivo e até a providenciar-lhe socorro, em troca de sua bolsa.

Espantado, diante do desprendimento de Jeziel pela posse das moedas, e conquistado pelo magnetismo do jovem enfermo, Irineu toma-se de bons propósitos e resolve socorrê-lo encaminhando-o à casa de Efraim, um dos bons homens do “caminho”.

Diante de mais um sofredor, pois na véspera recolhera outro doente de Cefalônia, vitimado pela mesma doença, resolve transportá-los para Jerusalém, onde os recursos e o número de cooperadores é maior.

E assim, ao crepúsculo, Efraim acomoda os dois enfermos em uma carroça cuidadosamente velada por um toldo de pano barato e parte em busca do socorro necessário, rumo a Jerusalém.

Seguindo lentamente para não esgotar os animais, pois a viagem é longa, tem pela frente um árduo caminho somente abrandado pelo frescor da noite. Os doentes ora reclamam, ora deliram atacados pela febre, para depois adormecerem esgotados.

 

Muitas vezes são detidos pelo cansaço natural ou pela necessidade de atendimento aos enfermos, feito sempre de forma carinhosa por Efraim, um verdadeiro irmão.

As paisagens se sucedem no ir e vir das trilhas sinuosas e irregulares. De quando em vez avistam uma propriedade onde Efraim busca reabastecer-se de água. Alguns, bondosos, ofertam-lhes víveres, tomados de piedade pelo estado dos viajantes.

Após a longa e solitária madrugada, as primeiras luzes da aurora já se fazem perceber quando ainda restam algumas milhas para Jerusalém. Neste ponto a estrada de Jope torna-se suave e harmoniosa, circundada por tamareiras e pessegueiros em flor.

Após noite estafante, Jeziel e seu companheiro de infortúnio jaziam esgotados em sono profundo e não puderam ver as grandes plantações de

legumes ao lado do tênue fio de água e nem a mimosa casinha cercada de flores e de frutos, onde Efraim parou para buscar os últimos recursos da viagem.

Foi o bondoso Zacarias que, apiedando-se dos passageiros adormecidos, pessoalmente providenciou água e algumas frutas para os viajantes. A família, que cedo iniciava o seu labor, atendeu prestimosa ao cansado condutor da carroça que, a uma pergunta de Ruth, a devotada esposa de Zacarias, respondeu atencioso:

“Não creio ser de bom alvitre que a senhora e a sua filha se aproximem dos enfermos: seu estado é lastimável e neste momento julgo melhor deixá-los descansar. Apenas algumas milhas e eles receberão o tratamento adequado em Jerusalém. Fiquem em paz, Deus lhes proteja”.

E desta maneira segue adiante com a sua tarefa cristã, conduzindo seus irmãos ao abrigo da “Casa do Caminho”.

Jeziel esteve ali! Tão próximo! Passou diante da casa de Zacarias onde estava sua irmã Abigail, pois era o caminho mais lógico, senão o único, do porto de Jope a Jerusalém, naquela época. Por que não se encontraram, se tanto se buscavam?

Quem leu “Paulo e Estêvão” sabe todo o drama que se desenrolou a partir deste momento da narrativa, tendo Saulo sido impulsionado à perseguição aos cristãos pelas divergências com Estêvão, nome adotado por Jeziel, que velava todo o seu passado.

Será que estava tudo traçado, para que acontecesse da maneira que aconteceu? Seria a fatalidade? Todos os sacrifícios, crimes, perseguições e abusos fariam parte de um enredo previamente traçado, apenas com a finalidade de converter Saulo de Tarso, o imponente “Doutor da Lei”, ao Cristianismo nascente? Não poderia Abigail, num impulso, ter se aproximado da carroça e descoberto que um dos enfermos era o seu amado irmão? Que consequências adviriam desta nova situação? A missão de Paulo de Tarso não se cumpriria?

Busquemos as respostas à luz da razão, através da Doutrina Espírita.

Com critério situemos Saulo, Jeziel e Abigail. Estudando o capítulo X da segunda parte de “O Livro dos Espíritos” intitulado Das Ocupações e Missões dos Espíritos, podemos classificar as encarnações de Jeziel e Abigail como missionárias. Reportemo-nos à questão 575:

 

“As ocupações comuns mais nos parecem deveres do que missões propriamente ditas. A missão, de acordo com a idéia a que esta palavra está associada, tem um caráter menos exclusivo, de importância sobretudo menos pessoal. Deste ponto de vista, como se pode reconhecer que um homem tem realmente na Terra uma determinada missão?

Pelas grandes coisas que opera, pelos progressos a cuja realização conduz seus semelhantes”.

Os irmãos de Corinto sempre demonstraram sua superioridade moral e perfeita identificação com os princípios cristãos. Influíram decisivamente no progresso de seus semelhantes. Tomemos como exemplo o Procônsul Sérgio Paulo que tomou a si a responsabilidade de uma atitude humanitária com um escravo condenado à morte, concedendo-lhe a liberdade e a vida, influenciado decisivamente pelo comportamento de Jeziel.

Quanto a Saulo, que sofreu a influência vital destes dois Espíritos magníficos, vamos colocá-lo em plano diferente. Espírito nobre, com fortes qualidades morais, sofria ainda os males do personalismo egoístico, necessitado do burilamento santificante na carne. Recebeu e aceitou uma gigantesca tarefa para alcançar os patamares superiores do mundo espiritual e venceu brilhantemente, tornando-se um símbolo do progresso da alma. Certamente Deus o escolheu para situá-lo mais próximo de nós e nos mostrar que é possível o passo grandioso da emancipação da alma em uma encarnação. É como se todos fôssemos “Saulos” na busca de ser “Paulos”.

Retornemos aos fatos: Por que tudo aconteceu daquela maneira? Porque, para implantar a luz na faixa das sombras, é necessária muita perseverança na luta contra as imperfeições humanas e muito sacrifício. Sabemos que Jesus não veio sozinho à Terra. Quando de sua estada entre nós foi necessária a formação de uma verdadeira cunha de luz, composta por Espíritos superiores, para penetrar a zona sombria que envolvia o nosso planeta e permitir que o Divino Pastor semeasse definitivamente o Amor entre os homens. Muitos sacrifícios eram previstos e os Espíritos corajosos aceitaram a missão de reencarnar naquele momento com galhardia, exemplificando a sua independência da matéria.

Saulo de Tarso poderia ter-se convertido de outra maneira, através da palavra firme e amorosa de Estêvão ou dos exemplos dos bondosos Galileus do “caminho”, mas as suas imperfeições o impediram de compreender de pronto as belezas do Evangelho do Mestre e sacrificou a muitos que fariam parte do seu exército de luz, se de imediato ele se convertesse.

Nada de fatalismo, apenas o livre-arbítrio movendo-se na direção que lhe impõe a imperfeição ainda existente, àquela época, naquele Espírito. Pela resposta à questão 853 de “O Livro dos Espíritos”, ficamos sabendo que “fatal, no verdadeiro sentido da palavra, só o instante da morte o é”. Quando Deus o determina ele é inexorável.

Abigail poderia ter encontrado Jeziel à frente da casa de Zacarias. Trataria do irmão com desvelo e carinho, tendo-o a seu lado e travando-se entre ele e Saulo uma forte amizade. Quando da visita de Ananias (que converteu Abigail), certamente Jeziel seria tocado pela mensagem de Jesus e a levaria até Saulo.

Apenas os bons Espíritos não sugeriram a Abigail que buscasse a carroça que passou diante de sua morada, por achar que melhor seria Jeziel conhecer a obra cristã em Jerusalém, onde seria mais útil. A sugestão para que Abigail se mantivesse a distância, quando da passagem de Jeziel na estrada de Jope, terá sido feita pelos Espíritos que a auxiliavam na sua missão.

 

Questão 459:

“Influem os Espíritos em nossos pensamentos e em nossos atos?

Muito mais do que imaginais. Influem a tal ponto, que, de ordinário, são eles que vos dirigem”.

Em todos os momentos está presente a perfeição divina com suas leis justíssimas, o respeito ao livre-arbítrio, a lei de causa e efeito, a influência dos Espíritos no mundo corporal, a exemplificação de Espíritos superiores, a determinação ao bem de um Espírito superior que nos mostra como é possível e que vale a pena e, acima de tudo, a presença constante da misericórdia divina a exaltar o amor, nesta obra magnífica de Emmanuel.

 

“Paulo e Estêvão” é para se ler sempre!
 
Fonte: REFORMADOR
ISSN 1413-1749
REVISTA DE ESPIRITISMO CRISTÃO
FUNDADA EM 21-1-1883
ANO 117 / ABRIL, 1999 / Nº 2.041
Fundador: Augusto Elias da
Silva

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