O DEVOTO
DESILUDIDO
O
fato parece anedota, mas um amigo nos contou a pequena história que passamos
para a frente, assegurando que o relato se baseia na mais viva realidade.
Hemetério
Rezende era um tipo de crente esquisito, fixado à idéia de paraíso. Admitia piamente
que a prece dispensava a boas obras, e que a oração ainda era o melhor meio de
se forrar a qualquer esforço.
“Descansar,
descansar!...” Na cabeça dele, isso era um refrão mental incessante. O cumprimento
de mínimo dever lhe surgia à vista por atividade sacrificial e, nas poucas obrigações
que exercia, acusava-se por penitente desventurado, a lamentar-se por bagatelas.
Por isso mesmo, fantasiava o “doce fazer nada” para depois da morte do corpo físico.
O reino celeste, a seu ver, constituir-se-ia de espetáculos fascinantes de
permeio com manjares deliciosos... Fontes de leite e mel, frutos e flores, a s
e revelarem por milagres constantes, enxameariam aqui e ali, no éden dos
justos...
Nessa
expectativa, Rezende largou o corpo em idade provecta, a prelibar prazeres e
mais prazeres.
Com
efeito, espírito desencarnado, logo após o grande transe foi atraído, de
imediato, para uma colônia de criaturas desocupadas e gozadoras que lhe eram
afins, e aí encontrou o padrão de vida com que sonhara: preguiça louvaminheira,
a coroar-se de festas sem sentido e a empanturrar-se de pratos feitos.
Nada
a construir, ninguém a auxiliar...
As
semanas se sobrepunham às semanas, quando, Rezende, que se supunha o céu,
passou
a sentir-se castigado por terrível desencanto. Suspirava por renovar-se e
concluía que para isso lhe seria indispensável trabalhar...
Tomado
de tédio e desilusão, não achava em si mesmo senão o anseio de mudança.
À
face disso, esperou e esperou, e, quando se viu à frente de um dos comandantes
do estranho burgo espiritual, arriscou, súplice:
-
Meu amigo, meu amigo!... Quero agir, fazer algo, melhorar-me, esquecer-me!...
Peço transformação, transformação!...
-
Para onde deseja ir? – indagou o interpelado, um tanto sarcástico.
-
Aspiro a servir, em favor de alguém... Nada encontro aqui para ser útil... Por
piedade, deixe-me seguir para o inferno, onde espero movimentar-me e ser
diferente...
Foi
então que o enigmático chefe sorriu e falou, claro:
-
Hemetério, você pede para descer ao inferno, mas escute, meu caro!...
Sem responsabilidade, sem disciplina, sem trabalho, sem qualquer necessidade de
praticar a abnegação, como vive agora, onde pensa você que já está?
Irmão X, Estante
da VIDA. Chico Xavier
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