A casa de Ismael
Um dia,
reunindo o Senhor seus Apóstolos, ao pé das águas claras e alegres do Jordão,
descortinou-lhes o panorama imenso do mundo.
Lá estavam as
grandes metrópoles, cheias de faustos e grandezas.
Alexandria e
Babilônia, junto Roma dos Césares, acendiam na terra o fogo da luxúria e dos pecados.
E Jesus,
adivinhando a miséria e o infortúnio do Espírito mergulhado os humanos
tormentos, alçou a mão compassiva em direção à paisagem triste do Planeta,
declarando aos discípulos:
“Ide e pregai!
Eu vos envio ao mundo como ovelhas ao meio de lobos, mas não vim senão para
curar os doentes e proteger os desgraçados.”
E os Apóstolos
partiram, no afã de repartir as dádivas do seu Mestre.
Ainda hoje,
afigura-se-nos que a voz consoladora do Cristo mobiliza as almas abnegadas,
articulando-as no caminho escabroso da moderna civilização. Os filhos do
sacrifício e da renúncia abrem clareiras divinas no cipoal escuro das
descrenças humanas, constituindo exércitos de salvação e de socorro aos homens,
que se debatem no naufrágio triste das esperanças; e, se a vida pode cerrar os
nossos olhos e restringir a acuidade das nossas percepções, a morte vem
descerrar-nos um mundo novo, a fim de que possamos entrever as verdades mais
profundas do plano espiritual.
Foi Miguel
Couto que exclamou, em um dos seus momentos de amargura, diante da miséria
exibida em nossas praças públicas:
“Ai dos pobres
do Rio de Janeiro, se não fossem os Espíritas.”
E hoje que a
morte reacendeu o lume dos meus olhos, que aí se apagava, nos derradeiros tempos
de minha vida, como luz bruxuleante dentro da noite, posso ver a obra
maravilhosa dos espíritas, edificada no silêncio da caridade evangélica.
Eu não
conhecia somente o Asilo São Luís, que se derrama pela enseada do Caju como uma
esteira de pombais claros e tranquilos, onde a velhice desamparada encontra
remanso de paz, no seio das tempestades e das dolorosas experiências do mundo,
como realização da piedade pública, aliada à propaganda das idéias
católicas.Conhecia, igualmente, o Abrigo Teresa de Jesus, o Amparo Teresa
Cristina e outras casas de proteção aos pobres e desafortunados do Rio de
Janeiro, que um grupo de criaturas abnegadas do proselitismo espírita havia
edificado. Mas, meu coração, que as dores haviam esmagado, trucidando todas as
suas aspirações e todas as suas esperanças, não podia entender a vibração
construtora da fé dos meus patrícios, que Xavier de Oliveira tachara de loucos
no seu estudo mal avisado do Espiritismo no Brasil.
A verdade hoje
é para mim mais profunda e mais clara. Meu olhar percuciente de desencarnado
pode alcançar o fundo das coisas, e a realidade é que a organização das
consoladoras doutrinas dos Espíritos, no Brasil, não está formada à revelia da
vontade soberana, do amor e da justiça que nos presidem aos destinos. Obra
estreme da direção especializada dos homens, é no Alto que se processam as suas
bases e as suas diretrizes.
Por uma
estranha coincidência defrontam-se, na Avenida Passos, quase frente a frente, o
Tesouro Nacional e a Casa de Ismael.
Tesouros da
Terra e do Céu, guardam-se no primeiro as caixas fortes do ouro tangível, ou
das suas expressões fiduciárias; e, no segundo, reúnem-se os cofres
imortalizados das moedas do Espírito.
De um, parte a
corrente fertilizante das economias do povo, objetivando a vitalidade física do
país; e, do outro, parte o manancial da água celeste que sacia toda sede,
derramando energias espirituais e intensificando o bendito labor da salvação de
todas as almas.
A Obra da
Federação Espírita Brasileira é a expressão do pensamento imaterial dos seus
diretores do plano invisível, indene de qualquer influenciação da personalidade
dos homens. Semelhantes àqueles discípulos que partiram para o mundo como o
“Sal da Terra”, na feliz expressão do Divino Mestre, os seus administradores
são intérpretes de um ditame superior, quando alheados de sua vontade
individual para servir ao programa de amor e de fé ao qual se propuseram. O
roteiro de sua marcha é conhecido e analisado no mundo das verdades do espírito
e a sua orientação nasce da fonte das realidades superiores e eternas, não
obstante todas as incompreensões e todos os combates. A história da Casa de
Ismael nos espaços está cheia de exemplos edificantes de sacrifícios e dedicações.
Se Augusto
Comte. afirmou que os vivos são cada vez mais governados pelos mortos, nas
intuições do seu positivismo, nada mais fez que refletir a mais sadia de todas
as verdades. A Federação que guarda consigo as primícias de sede do Tesouro
espiritual da terra de Santa Cruz não está de pé somente à custa do esforço dos
homens, que por maior que ele seja será sempre caracterizado pelas fragilidades
e pelas fraquezas. Muitos dos seus sempre diretores desencarnados aí se conservam
como aliados do exército da salvação que ali se reúne.
Ainda há
poucos dias, enquanto a Avenida fervilhava de movimento, vi às suas portas uma
figura singela e simpática de velhinho, pronto para esclarecer e abençoar com
as suas experiências.
- Conhece-o? –
disse-me alguém rente aos ouvidos.
- ?
- Pedro
Richard...
Nesse ínterim
passa um companheiro da humanidade, cheio de instintos perversos que a morte
não conseguiu converter à piedade e ao amor fraterno.
E Pedro
Richard abre os seus braços paternais para a entidade cruel.
– Irmão, não
queres a bênção de Jesus? Entra comigo ao seu banquete!...
– Por quê? –
replica-lhe o infeliz, transbordando perversidade e zombaria – eu sou ladrão e
bandido, não pertenço à sociedade do teu Mestre.
– Mas não
sabes que Jesus salvou Dimas, apesar de suas atrocidades, levando em consideração
o arrependimento de suas culpas? – diz-lhe o velhinho com um sorriso fraterno.
– Eu sou o mau
ladrão, Pedro Richard. Para mim não há perdão nem paraíso...
Mas o irmão
dos infe1izes abraça em plena rua movimentada o leproso moral e me diz
suavemente aos ouvidos :
– Jesus salvou
o bom ladrão e Maria salvou o outro...
E o que
eu vi foi uma lágrima suave e clara rolando na face do pecador arrependido.
***
Senhor, eu não
estive aí no mundo na companhia dos teu a servos abnegados e nem comunguei à
mesa de Ismael onde se guarda o sangue do teu sangue e a carne da tua carne que
constituem a essência de luz da tua doutrina.
Eu não te vi
senão com Tomé, na, sua indiferença e na sua amargura, e como os teus
discípulos no caminho de Emaús, com os olhos enevoados pelas neblinas da noite;
todavia podia ver-te na tua casa, onde se recebe a água divina da fé portadora
de todo o amor, de toda a crença e de toda esperança. Mas não é tarde,
Senhor!... Desdobra sobre o meu espírito a luz da tua misericórdia e deixa que
desabrochem ainda agora, no meu coração de pecador, as açucenas perfumadas do
teu perdão e da tua piedade para que eu seja incorporado às falanges radiosas
que operam na sua casa, exibindo com o meu esforço de espírito a mais clara e a
mais sublime de todas as profissões de fé.
Humberto de
Campos
(Diário da
Noite, do Rio Janeiro de 13 de junho de 1936)
Nenhum comentário:
Postar um comentário