quarta-feira, 12 de novembro de 2014


O lar de uma família espírita - Allan Kardec

 




Há três anos a Sra. G... ficou viúva, com quatro crianças. O filho mais velho é um rapaz amável, de dezessete anos, e a filha mais moça uma encantadora menina de seis. Desde muito tempo essa família se dedica ao Espiritismo, e antes mesmo que esta crença se tivesse tornado tão popular como hoje, marido e mulher tinham uma espécie de intuição que diversas circunstâncias haviam desenvolvido. O pai do Sr. G... havia aparecido para ele várias vezes, na mocidade, sempre para preveni-lo de coisas importantes ou para lhe dar conselhos úteis. Fatos semelhantes também se haviam passado entre os seus amigos, de sorte que para eles a existência de além-túmulo não era objeto da menor dúvida, assim como não o era a possibilidade de nos comunicarmos com nossos entes queridos.

 

Quando o Espiritismo surgiu, foi apenas a confirmação de uma ideia bem assentada e santificada pelo sentimento de uma religião esclarecida, pois aquela família é um modelo de piedade e de caridade evangélica. Na nova ciência aprenderam os meios mais diretos de comunicação. A mãe e um dos filhos tornaram-se excelentes médiuns. Mas, longe de empregar essa faculdade em questões fúteis, todos consideravam-na precioso dom da Providência, do qual não era permitido servir-se senão para coisas sérias. Assim, jamais a praticavam sem recolhimento e respeito, e longe das vistas dos importunos e curiosos.

 

Nesse meio tempo o pai adoeceu. Pressentindo seu fim próximo, reuniu os filhos e lhes disse: “Meus caros filhos e minha amada mulher. Deus me chama para Ele. Sinto que vou deixar-vos daqui a pouco, mas também sinto que por vossa fé na imortalidade encontrareis força para suportar esta separação com coragem, assim como eu levo o consolo de que poderei sempre estar entre vós e vos ajudar com os meus conselhos. Assim, chamai-me quando eu não estiver mais na Terra. Virei sentar-me ao vosso lado e conversar convosco, como o fazem os nossos antepassados. Na verdade, estaremos menos separados do que se eu partisse para uma terra distante.

 

Minha cara esposa, deixo-te uma grande tarefa, mas quanto mais pesada for, mais gloriosa será. Tenho certeza de que os nossos filhos te ajudarão a suportá-la. Não é, meus filhos? Auxiliareis a vossa mãe; evitareis tudo quanto possa fazê-la sofrer; sereis sempre bons e benevolentes para com todos; estendereis a mão aos vossos irmãos infelizes, porque não haveis de querer estendê-la um dia pedindo em vão para vós. Que a paz, a concórdia e a união reinem entre vós. Que jamais o interesse vos separe, porque o interesse material é a maior barreira entre a Terra e o Céu. Pensai que estarei sempre junto a vós; que vos verei como vos vejo neste momento, e ainda melhor, pois verei o vosso pensamento. Não queirais, assim, entristecer-me depois da morte, do mesmo modo que não o fizestes durante a minha vida”.

 

É um espetáculo realmente edificante a vida dessa piedosa família. Alimentadas nas ideias espíritas, essas crianças não se consideram separadas do pai. Para elas, ele está presente. Temem praticar a menor ação que possa desagradá-lo. Uma noite por semana, e às vezes mais, é consagrada a conversar com ele. Existem, porém, as necessidades da vida, que devem ser providas, pois a família não é rica. É por isso que um dia certo é marcado para essas conversas piedosas e sempre esperadas com impaciência. Muitas vezes pergunta a pequenina: “É hoje que papai vem?” Esse dia transcorre entre conversas familiares e instruções proporcionadas à inteligência, algumas vezes infantis, outras vezes graves e sublimes. São conselhos dados a propósito de pequenas travessuras que ele assinala. Se faz elogios, também não poupa críticas, e o culpado baixa os olhos, como se o pai estivesse diante dele; pede-lhe perdão, que por vezes só é concedido depois de algumas semanas de prova. Sua sentença é esperada com febril ansiedade. Então, que alegria, quando o pai diz: “Estou contente contigo!” Entretanto, a mais terrível sentença é: “Não virei na próxima semana.”

 

A festa anual não é esquecida. É sempre um dia solene, para o qual convidam os avós e demais mortos da família, sem esquecer um irmãozinho, falecido há alguns anos. Os retratos são enfeitados de flores e cada criança prepara um pequeno trabalho, por vezes apenas uma saudação tradicional. O mais velho faz uma dissertação sobre assunto grave; uma das meninas toca um trecho de música; a menor conta uma fábula. É o dia das grandes comunicações, e cada convidado recebe uma lembrança dos amigos que deixou na Terra.

 

Como são belas essas reuniões, na sua tocante simplicidade! Como tudo, ali, fala ao coração! Como é possível sair delas sem estar impregnado do amor ao bem? Nenhum olhar de mofa, nenhum sorriso cético vem perturbar o piedoso recolhimento. Alguns amigos que partilham das mesmas convicções e que são devotos da religião da família, são os únicos admitidos a participar desse banquete do sentimento.

 

Ride quanto quiserdes, vós que zombais das coisas mais santas. Por mais soberbos e endurecidos que sejais, não vos faço a injúria de acreditar que o vosso orgulho possa ficar impassível e frio ante tal espetáculo.

 

Um dia, entretanto, foi de luto para a família, dia de verdadeiro pesar: o pai havia anunciado que durante algum tempo, longo tempo mesmo, não poderia vir. Ele havia sido chamado para uma importante missão longe da Terra. A festa anual não deixou de ser celebrada, mas foi triste, pois o pai lá não estava. Ao partir, ele havia dito: “Meus filhos, que ao meu retorno eu vos encontre todos dignos de mim”, e cada um se esforça por tornar-se digno dele. Eles ainda estão esperando[1].


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[1] A festa anual mencionada é a do Dia de Finados, que era celebrada pelos Druidas e foi adotada na França pelo Abade de Cluny, Santo Odilon, em 998, mais tarde oficializada pela Igreja Católica. Para essa família era o Dia dos Espíritos. (N. do Rev.).




Revista Espírita, setembro de 1859.

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