terça-feira, 22 de outubro de 2013

O Devoto Desiludido





João Pedro chega de uma cavalgada
no sertão Paraibano.
 
O Devoto Desiludido

O fato parece anedota, mas um amigo nos contou a pequena história que passamos para a frente, assegurando que o relato se baseia na mais viva realidade.



Hemetério Rezende era um tipo de crente esquisito, fixado à ideia de paraíso. Admitia piamente que a prece dispensava a boas obras, e que a oração ainda era o melhor meio de se forrar a qualquer esforço.



“Descansar, descansar!...” Na cabeça dele, isso era um refrão mental incessante. O cumprimento de mínimo dever lhe surgia à vista por atividade sacrificial e, nas poucas obrigações que exercia, acusava-se por penitente desventurado, a lamentar-se por bagatelas. Por isso mesmo, fantasiava o “doce fazer nada” para depois da morte do corpo físico. O reino celeste, a seu ver, constituir-se-ia de espetáculos fascinantes de permeio com manjares deliciosos... Fontes de leite e mel, frutos e flores, a s e revelarem por milagres constantes, enxameariam aqui e ali, no éden dos justos...



Nessa expectativa, Rezende largou o corpo em idade provecta, a prelibar prazeres e mais prazeres.



Com efeito, espírito desencarnado, logo após o grande transe foi atraído, de imediato, para uma colônia de criaturas desocupadas e gozadoras que lhe eram afins, e aí encontrou o padrão de vida com que sonhara: preguiça louvaminheira, a coroar-se de festas sem sentido e a empanturrar-se de pratos feitos.



Nada a construir, ninguém a auxiliar...



As semanas se sobrepunham às semanas, quando, Rezende, que se supunha o céu, passou a sentir-se castigado por terrível desencanto. Suspirava por renovar-se e concluía que para isso lhe seria indispensável trabalhar...



Tomado de tédio e desilusão, não achava em si mesmo senão o anseio de mudança.



À face disso, esperou e esperou, e, quando se viu à frente de um dos comandantes do estranho burgo espiritual, arriscou, súplice:



- Meu amigo, meu amigo!... Quero agir, fazer algo, melhorar-me, esquecer-me!... Peço transformação, transformação!...



- Para onde deseja ir? – indagou o interpelado, um tanto sarcástico.

- Aspiro a servir, em favor de alguém... Nada encontro aqui para ser útil... Por piedade, deixe-me seguir para o inferno, onde espero movimentar-me e ser diferente...



Foi então que o enigmático chefe sorriu e falou, claro:



- Hemetério, você pede para descer ao inferno, mas escute, meu caro!... Sem responsabilidade, sem disciplina, sem trabalho, sem qualquer necessidade de praticar a abnegação, como vive agora, onde pensa você que já está?

 

Irmão X

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