AS MEDIUNIDADES DE KARDEC
Sergio
F. Aleixo
O
codificador do espiritismo leciona que os médiuns
inspirados têm mais dificuldade de discernir o pensamento que lhes é sugerido
daquele que lhes é próprio, ao oposto dos médiuns intuitivos, nos quais essa
distinção se apresenta mais sensível, sendo os primeiros uma variedade dos
segundos. Considera ainda o mestre espírita que, bem sugestionados por nossos
anjos guardiães, espíritos protetores e familiares, sob esse aspecto, todos
somos médiuns. Motivo, pois, não haveria para que Kardec não o fosse. E o era,
por sinal, do Espírito da Verdade, seu guia, publicamente declarado. Reconheceu, além disso, ser assistido com ideias que lhe
eram sugeridas pelos espíritos, ao mesmo tempo em que afirmou não ter “nenhuma
das qualidades exteriores da mediunidade efetiva”. Que
quis dizer o mestre com isto? Eis a questão. Que não via, nem ouvia espíritos?
Ou, por outra, que não lhe causavam
frêmitos agindo sobre seu braço para fazê-lo escrever, nem lhe provocavam
transes? Esta segunda alternativa é mais razoável para “qualidades exteriores”
da mediunidade efetiva, visto que pode ser efetiva, ou seja, real, sem ser
ostensiva, isto é, notada, manifesta à percepção de terceiros.
Certa
feita, observado em meio a seu trabalho por um espírito que manteve diálogo mediúnico
com um leitor da sua Revista, Kardec foi surpreendido a escrever, e
estava rodeado por cerca de vinte espíritos, que “murmuravam acima de sua
cabeça”. Segundo esse espírito, Kardec os “ouvia” tão bem que olhava para todos
os lados para ver de onde vinha o “ruído”, chegando a erguer-se, abrir a janela e checar se
não seria, por acaso, o vento ou a chuva. Comunicado sobre isso por
correspondência posteriormente publicada na sua Revista, o mestre externou que
o fato era absolutamente exato. Contudo, fica esclarecido que só dois ou três
desses cerca de vinte espíritos sopravam diretamente ao codificador o que
deveria escrever, e que o mestre julgava serem dele mesmo as ideias. Médium,
pois, inspirado; quase audiente neste caso; o que também
se deduz da mensagem de 14 de setembro de 1863, em que a ação espiritual é
relatada tão constante ao derredor do mestre, sobretudo a do Espírito da
Verdade, que mesmo ele não a podia negar.
Até
aqui, não pode haver dúvidas nem discordâncias sobre a mediunidade de Kardec.
Intuição, inspiração, semiaudiência. Mas pode-se ir além? E quanto a ver os
espíritos? Bem... Kardec ensina que quase sempre os médiuns videntes exercem
essa faculdade em estado sonambúlico, ou dele aproximado; que não raro ela é efeito de crise passageira e,
nessa medida, apresenta, portanto, a qualidade exterior do transe. Segundo o
mestre, porém, alguns médiuns videntes exercem sua faculdade em estado normal,
perfeitamente acordados. A priori, não há deste último
tipo de exercício qualquer qualidade exterior; é efetivo, mas não ostensivo, a
menos que se possa aferir a precisão das visões mediúnicas, por exemplo, nos
casos de reconhecimento de falecidos por terceiros.
Ora,
em O Livro dos Espíritos, 257, Kardec surpreende ao dizer que viu
desencarnados atravessando o fogo sem que isso lhes causasse dor alguma. No original: “nous en avons
vu passer à travers les flammes”: “já os vimos atravessar chamas”; “vimo-los passar através das chamas”.
Para não conferir a seus textos conotação muito impositiva e pessoal,
escritores podem tratar a si mesmos por nós em vez de eu. Chama-se plural de
modéstia. Uma constante, aliás, em Kardec; quase sempre
se refere a si na 1.ª pessoa do plural; raramente na 1.ª pessoa do singular.
Mesmo que se queira imaginar aí a expressão de experiência compartilhada por
outros, ainda assim, o próprio Kardec estará incluído na ação verbal; doutro
modo, escreveria algo como “foram vistos”, ou “têm sido vistos passar através
das chamas”, e nunca: “nós os vimos, os temos visto”. Entenda-se: “Eu os vi, os
tenho visto passar pelas chamas”.
Em O
Livro dos Médiuns, 169, o mestre espírita reporta uma experiência, desta
vez junto a muito bom médium vidente, que o acompanhou a uma ópera. Ali mesmo, após um baixar da cortina, evocou e conversou
com Weber, autor de Obéron. Este, após estabelecer breve diálogo com Kardec e o
médium, deixou-os, prometendo insuflar nos cantores mais ímpeto. Dito e feito.
Nesse ínterim, Kardec surpreende novamente ao escrever: “Alors on le vit sur la
scène, planant au-dessus des acteurs; un effluve semblait partir de lui et se répandre sur eux; à ce moment, il y eut chez eux une
recrudescence visible d'énergie”: “Vimo-lo então sobre o palco, pairando acima
dos atores. Um eflúvio parecia derramar dele para os intérpretes, espalhando-se
sobre eles. Nesse momento verificou-se entre eles uma visível recrudescência da
energia”. Kardec mesmo viu o espírito e, pois, trata-se
de novo plural de modéstia; ou, por outro lado, como neste caso é possível
considerar, foi o mestre partícipe da visão do médium, o que, ali, até
funcionou como controle, garantindo a um e outro que não eram vítimas da
imaginação; ambos viram. Como quer que seja, Kardec viu o espírito de Weber
sobre os atores em cena.
Contra
isso, aparentemente, vai uma observação do codificador sobre a descrição de
dois espíritos que viveram em passado mais distante e que foram avistados por
aquele que, provavelmente, era o mesmo médium que esteve com ele na ópera.
Escreve o mestre que,
nesse caso, nada podia provar que não se tratasse apenas da imaginação do
sensitivo, porque não havia “controle”, i. é, uma confirmação da descrição da
aparência dos espíritos, como houve noutros exemplos relativos a mortos
recentes e cujos detalhes atinentes a seu aspecto puderam ser subscritos por
amigos e parentes dos falecidos. Nada, porém, existe aí que negue a Kardec a
eventual condição de médium vidente, discretamente externada nos passos
comentados de O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns. Outra
forma de comprovação seria Kardec, ou um terceiro, também avistá-los. Parece,
contudo, que isso não ocorreu, o que não é desabonador a priori, como bem
explica o mestre na referida observação.
Codificador, sim; por que não? Kardec disse:
“Em tudo isto não fiz senão recolher e coordenar metodicamente o ensino dado
pelos espíritos; sem levar em conta opiniões isoladas, adotei as do maior
número, afastando todas as ideias sistemáticas, individuais, excêntricas ou em
contradição com os dados positivos da ciência”. (Revista Espírita.
Set/1863. Segunda Carta ao Padre Marouzeau.) Modesto, minimizou sua
participação; entretanto, o advérbio revela a importância pessoal dele:
“recolher e coordenar METODICAMENTE”. Não menos relevante é o fato de Kardec
haver bem fixado a matéria-prima do seu trabalho: “o ensino dado pelos
espíritos”. Kardec não inventou nenhum princípio. Todos resultaram do ensino;
todavia, submetido, sim, à conjuntura dessa coleta e coordenação metódica,
mérito de Kardec, sem o que não haveria espiritismo. Uma codificação implica o
ato de codificar, que não é só reunir, compilar; há que fazê-lo
sistematicamente (A.B.L., 2008). No caso do espiritismo, ou doutrina dos
espíritos, houve reunião, compilação de materiais e, daí, a inferência
paradigmática de princípios, cujo estabelecimento se deveu ao método de Kardec.
Não tem relevância o fato de ser ausente das obras dele a designação
codificador. Essa percepção demandaria distanciamento histórico. Chamá-lo assim
só o diminuiria se excluísse seus esforços de coleta e coordenação metódica do
ensino espírita; mas no ato de codificar estão implicados o mérito e as
escolhas pessoais do codificador, evidentemente determinantes. O caso é, pois,
mais lexicográfico que doutrinário.
Cunha, C. & Cintra, L. F. L. Nova Gramática
do Português Contemporâneo. Cap. 11. 3.ª ed., 7.ª impressão, Nova
Fronteira, 2001, p. 283.
Provavelmente, o Sr. Adrien, membro da S.P.E.E. Cf.
Revista Espírita. Dez/1858: “Estivemos juntos nos teatros, bailes,
passeios, hospitais, cemitérios e igrejas; assistimos a enterros, casamentos,
batismos e sermões; em toda parte observamos a natureza dos espíritos que ali
vinham reunir-se, estabelecendo conversação com alguns deles, interrogando-os e
aprendendo muitas coisas que tornaremos proveitosas aos nossos leitores”.
J. Herculano Pires, 18.ª ed., L.A.K.E., 1994, p.
176. Obs.: A forma vit é 3.ª pessoa do singular do passé simple, il vit: ele
viu. Kardec, porém, usou o pronome impessoal on, que equivale ao nosso a gente,
embora também possa indicar indeterminação do sujeito: viu-se, razão pela qual
divergem os tradutores entre “a gente o viu / nós o vimos / vimo-lo” e “foi
visto”. Concordo com Herculano Pires: “vimo-lo”. Se havia dois candidatos a
praticante da ação verbal (Kardec e/ou o médium), por que o mestre indeterminaria o sujeito? O mesmo se verifica no número seguinte,
o n. 170. Escreve Kardec, acompanhado de outro médium e sobre diferente
espírito: “Cela dit, on le vit aller se placer...”; “Dito isto, vimo-lo ir
colocar-se...”. Herculano, desta vez, salteia a expressão: “Dito isso, foi se
colocar...”. G. Ribeiro acresce palavra inexistente: “Dizendo isso, o médium o
viu ir colocar-se...”.
Cf. Revista Espírita. Dez/1858. Conversas
familiares de além-túmulo. Uma
viúva de Malabar e A bela cordoeira.
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