segunda-feira, 6 de setembro de 2021

 

Autoconhecimento
A pedra de toque da
felicidade

Christiano Torchi
christiano.torchi@gmail.com

Resumo

O presente texto é um modesto ensaio na tentativa de conceituar um tema caro ao Espiritismo: o autoconhecimento. Faz um paralelo entre o autodescobrimento e a felicidade, expondo os benefícios que pode desfrutar a pessoa que se dispõe a fazer uma incursão pelo interior de si mesma, bem assim demonstrando que o Espiritismo oferece recursos de excelência para esse propósito, com vistas à busca do verdadeiro sentido da vida, e que, uma vez encontrado, coloca o homem em condições de entender que ele é o artífice do próprio destino.

Palavras-chave

Autoconhecimento; felicidade; imortalidade; perfeição.

Atribui-se a Mark Twain (1835–1910), escritor norte-americano, a seguinte citação, embora se desconheçam fontes que comprovem essa autoria: “Os dois dias mais importantes de sua vida são: o dia em que você nasceu e o dia em que você descobre o porquê”.¹

Esta impactante frase remete ao pensamento do Espírito Joanna de Ângelis, segundo o qual, “[…] sem uma visão espiritual da existência física, a própria vida permaneceria sem sentido ou significado”.²

Eis a primeira descoberta que abre o portal do autoconhecimento: somos Espíritos, ora habitando um corpo físico, ora desligado dele. Conhecedores de que os Espíritos sobrevivem à morte física, logo, nos damos conta de que somos imortais! E por que é tão importante esse descobrimento? Sabendo-nos Espíritos imortais, temos a oportunidade de não mais centralizar os nossos interesses exclusivamente nos valores materiais.

Em que isso influencia na qualidade dos relacionamentos sociais e profissionais, enfim, na qualidade das decisões tomadas pelo indivíduo no dia a dia? A resposta a essa pergunta é consenso entre os religiosos em geral: as pessoas que genuinamente cultivam os valores espirituais são muito mais felizes do que aquelas que centralizam todos os seus interesses exclusivamente nos valores materiais. E qual seria a razão desse fenômeno?

Para entendermos melhor essa questão, convém refletir um pouco sobre o significado da felicidade. De acordo com o senso comum, a felicidade seria o estado durável de satisfação, de emoções positivas, tais como o contentamento e o bem-estar físico, espiritual e material.

Entretanto, no sentido filosófico, a felicidade possui um alcance muito mais profundo, que tem tudo a ver com o auto-conhecimento, com a busca da verdade. Quando os repórteres noticiam a desencarnação de alguém, invariavelmente, dizem: “fulano foi sepultado”; raramente dizem que “o corpo de fulano foi sepultado”. Para o espectador menos atento, passa a impressão de que a vida daquela pessoa encerrou ali, não mais existe, acabou, porque se resumia no corpo físico, que foi inumado. Essa, convenhamos, é uma visão reducionista da existência e que tem sido a causa de numerosos sofrimentos da raça humana.

Pierre Teilhard de Chardin (1881–1955), teólogo católico francês, teria dito, alhures, célebre frase, igualmente sem fontes que confirmem a autoria, mas válida independentemente de quem a proferiu: “não somos seres humanos vivendo uma experiência espiritual; somos seres espirituais vivendo uma experiência humana”. Tal máxima, analisada sob a óptica espírita, poderia ser interpretada assim: somos originários do Mundo Espiritual, nossa pátria verdadeira, que tem como corolário a reencarnação.

Ora, e por que, sendo Espíritos, temos necessidade de estagiar no mundo físico? Eis o segredo da felicidade: compreender a nossa natureza espiritual e encontrar o verdadeiro sentido da vida, a finalidade superior de nossa existência.

Todos renascemos com determinada missão, passando por inúmeras provas, com a finalidade de nos instruirmos e conquistarmos progressivamente a perfeição, que nos aproxima da verdade e do Criador.

Na questão 115 de O livro dos espíritos, encontramos ensinamento lapidar que embasa estas conclusões:

“Deus criou todos os Espíritos simples e ignorantes, isto é, sem saber. A cada um deu uma missão, com o fim de esclarecê-los e de fazê-los chegar progressivamente à perfeição, pelo conhecimento da verdade, para aproximá-los de si. Para eles, a felicidade eterna e sem mescla consiste nessa perfeição. Os Espíritos adquirem esses conhecimentos, passando pelas provas que Deus lhes impõe. Uns aceitam essas provas com submissão e chegam mais depressa à meta que lhes foi destinada. Outros só a suportam murmurando e assim, por culpa sua, permanecem afastados da perfeição e da prometida felicidade.”³ (Grifo nosso).

É sabido que a felicidade não é dispor de riqueza material suficiente que nos garanta todas as regalias e prazeres que o dinheiro pode proporcionar, nem é uma atividade mística de caráter alienante ou passivo, de fuga dos problemas do cotidiano, numa ilha de paz e tranquilidade. É, antes de tudo, no sentido aristotélico, uma atividade da alma ligada à conquista das virtudes, que nos ensina a organizar os desejos de forma racional, induzindo-nos a florescer o que há de melhor em nós.

Quando descobrimos quem somos, de onde viemos e para onde vamos e qual o significa[1]do de nossa estada no mundo, as chances de sermos felizes aumenta exponencialmente, porque adquirimos o senso das proporções, que nos permite avaliar ou medir o real valor da existência e fazer a melhor escolha possível no exercício de nosso livre-arbítrio.

Seres espirituais em desenvolvimento que somos, necessitamos de constantes cuidados para ascendermos em nossa jornada evolutiva. Se o corpo físico necessita de alimento material para desempenhar as funções vitais, o Espírito também necessita de provisões para desenvolver as faculdades intelectuais e morais, a fim de despertar as suas potencialidades latentes.

O alimento da alma é tudo aquilo que não é do corpo, que diz respeito ao crescimento moral. Diz-se isso sem qualquer desprezo ao organismo biológico, essa máquina maravilhosa, que é instrumento precioso dessas mesmas conquistas morais.

Das palavras atribuídas a Salomão, em Eclesiastes, “[…] ‘A felicidade não é deste mundo’ […]”, assim interpretadas pelo Espírito cardeal Morlot, em O evangelho segundo o espiritismo, deduzimos que não é possível conquistá-la sem esforço próprio, sem autoconhecimento. O fato de a Terra ser um lugar de provas e expiações não constitui empe[1]cilho irremovível à conquista da felicidade. Pelo contrário, as condições adversas de um mundo ainda hostil ao cultivo dos valores espirituais, constituem um laboratório propício, que nos estimula a lutar para vencermos os desafios da existência, para exercitarmos os potenciais do espírito.

A Lei Natural é o alicerce de todo o edifício moral, que é a Lei de Deus, a única ver[1]dadeira para a felicidade do homem, que lhe indica “[…] o que deve fazer ou não fazer […]” e que mostra que “[…] ele só é infeliz porque dela se afasta”. Somente o esforço do autoaperfeiçoamento nos conduz ao progresso real, que se dá por meio da prática de duas virtudes fundamentais:

Toda a moral de Jesus se resume na caridade e na humildade, isto é, nas duas virtudes contrárias ao egoísmo e ao orgulho. Em todos os seus ensinos, Ele aponta essas duas virtudes como as que conduzem à eterna felicidade […]. (Grifo nosso).

A sublimidade da virtude consiste no sacrifício do interesse pessoal, pelo bem do próximo, “[…] sem segundas intenções […]”. Sim, a conquista de tais valores não é fácil – bem o sabemos –, mas não estamos sós nessa empreitada. Deus nos concede inúmeros recursos para vencermos nossas mazelas, entre eles a assistência dos bons Espíritos, com os quais podemos nos contatar por meio da prece sincera e humilde.

Em todos os lugares e situações em que estivermos, jamais estaremos desassistidos da Providência Divina, que designa a cada um de nós um guia espiritual que nos orienta diuturnamente, sem violentar nosso livre-arbítrio e nossa autonomia moral.

Tome-se como exemplo o exercício das profissões de qualquer especialidade, em que, sem o saber, recebemos auxílio constante, desde que estejamos receptivos às sugestões que nos chegam por meio de sutis pensamentos, que podem ser potencializados por meio de uma singela oração. Em qualquer ramo profissional, sobretudo naqueles que lidam diretamente com as experiências humanas, é fundamental, para o êxito de qualquer cometimento, que estejamos sintonizados com essas forças superiores, sempre alinhadas com os deveres morais, com o que é justo, ético e bom.

Indagados por Kardec se haveria uma medida comum de felicidade para todos os ho[1]mens, os benfeitores deram esta reposta magistral:

“Para a vida material, é a posse do necessário; para a vida moral, a consciência tranquila e a fé no futuro.”

O homem é, quase sempre, o artífice de seus sofrimentos materiais e morais, sobretudo desses últimos, pois todas as paixões, tais como o orgulho ferido, a ambição frustrada, a ansiedade da avareza, a inveja, o ciúme, constituem torturas da alma, suplícios voluntários que cria para si mesmo. Em suma, geralmente a infelicidade do homem resulta da importância exagerada que ele dá às coisas deste mundo.

Para superar tais adversidades, Deus também colocou à disposição das criaturas humanas a consolação, a esperança e os meios objetivos de atenuar e até eliminar os sofrimentos, como bem o expõe a Doutrina Espírita.

Nesse sentido, o Espiritismo é o Consolador prometido por Jesus, porque, demonstrando a imortalidade e a Lei do Progresso, dá ao homem a certeza de um futuro melhor e do verdadeiro sentido da existência, contribuindo para o autoconhecimento de cada indivíduo.

De tudo que foi dito, conclui-se que o autoconhecimento é indissociável da felicidade, a qual é proporcional à elevação intelecto-moral dos Espíritos. É um estado d’alma que resulta da compreensão das Leis Divinas que levam ao autodescobrimento. O homem passa a vida procurando a felicidade, sem saber que ela mora dentro de si. Esse panorama somente mudará quando o ser humano se descobrir como o dono de seu próprio destino e agir no sentido de administrar bem a sua vida, procurando libertar-se gradativamente da influência das paixões que o retêm nas faixas do instinto, em que se prioriza a satisfação fugaz de todos os seus desejos.

Por tudo que se viu, conclui-se que o autoconhecimento induz à felicidade, condição interna do indivíduo, a qual vamos conquistando, gradativamente, à medida que nos aprofundamos na longa e difícil jornada do conhecimento de nós mesmos, que não prescinde das experiências humanas, na convivência consigo mesmo e com o próximo.

 

REFERÊNCIAS:
¹ Disponível em https://kdfrases.com/frase/107694. Acesso em: 27 ;jan. 2021.
² FRANCO, Divaldo P. Autodescobrimento: uma busca interior. Pelo Espírito Joanna de Angelis. (Série Psicológica Joanna de Ângelis, v. 6). 17. ed. Salvador: LEAL, 2013. Autodescobrimento: uma Busca Interior [prefácio].
³ KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. 9. imp. Brasília: FEB. 2020.
 ._____O evangelho segundo o espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 10. imp. Brasília: FEB, 2020. cap.5, it. 20.

._____ O livro dos espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. 9. imp. Brasília: FEB. 2020. q. 614.
._____O evangelho segundo o espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 10. imp. Brasília: FEB, 2020. cap. 15, it. 3.

._____ O livro dos espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. 9. imp. Brasília: FEB. 2020. q. 893.
._____ ._____ q. 922

terça-feira, 31 de agosto de 2021

 

NÃO TE RENDAS


Não te rendas ao desânimo e insiste no Bem. Guardes contigo a possibilidade do limite, mas Deus tem a possibilidade do impossível.

Segundo as Leis de Deus,

Tens somente o que dás.

O que deres aos outros,

É o que terás contigo.

O Senhor necessita de ti, onde te encontras.

Observa o que tens a fazer ainda hoje e perceber-lhe-ás a presença no dever que te espera.

Se não aceitas as condições de trabalho a que a vida te destina e te negas à precisa renovação, nada mais obterás, além do desapontamento no desemprego.

Ante o bem que se faça, faze o bem quanto possas, para que o bem pequeno se faça, junto de todos, o bem maior.

Todos somos, no mundo ou no Mais Além, devidamente chamados a colaborar na vitória do bem. E o bem aos outros será sempre a garantia de nosso próprio bem.

Não pares.

A estagnação é ponto obscuro em que os mais substanciosos valores se corrompem.

Não recorra à idéia de fatalidade para justificar o mal, porquanto o bem de todos triunfará sempre.

Não estaciones.

Em favor de todas as criaturas, estejam como estejam, Deus criou o apoio do trabalho e a bênção da esperança.

 

Emmanuel

 

domingo, 29 de agosto de 2021

 

A BRANDURA


 

 Andradina América de Andrada E Oliveira*

 


Asserena-te e vara a desventura

No caminho de dor, áspero e azedo;

Serenidade – o lúcido segredo

Em que a vida se eleva e transfigura.


 

Tudo cresce na força da brandura.

 A água desgasta os punhos do rochedo;

Olha a chuva cantando no arvoredo,

A transfundir-se em pão, bondosa e pura.


 

De coração batido e lodo à face,

Inda que o fel da injúria te traspasse,

Semeia o bem que as mágoas  alivia...


 

Mesmo trazendo o peito por cratera,

Suporta, ampara e crê, ajuda e espera,

Que amanhã será sempre novo dia.


 

(*) Poetisa, contista, romancista, iniciou sua vida literária, quase menina, conforme afirma sua filha Lola de Oliveira em Minha Mãe!, escrevendo em inúmeros periódicos sul-riograndenses. Foi também teatróloga e aplaudida conferencista. Professora pela Escola Normal de Porto Alegre, com distinção em todas as matérias, a poetisa de Folhas Mortas lecionou em cursos particulares, em várias cidades gaúchas, depois de nove anos dedicados ao magistério público. Fundou um jornal literário feminino, O Escrínio, mais tarde transformado em revista ilustrada, e formou, segundo Antônio Carlos Machado, entre as maiores feministas brasileiras de sua época. De 1920 até à sua desencarnação, residiu na capital paulista. (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 12 de Junho de 1878 – S. Paulo, 19 de Junho de 1935.)

 

BIBLIOGRAFIA: Folhas Mortas; Preludiando, contos; Cruz de Pérolas, contos ; etc.

 Do livro ANTOLOGIA DOS IMORTAIS

FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

NÃO PERDOAR

 

Bezerra de Menezes, já devotado à Doutrina Espírita, almoçava, certa feita, em casa de Quintino Bocaiúva, o grande republicano, e o assunto era o Espiritismo, pelo qual o distinto jornalista passara a interessar-se.

 

Em meio da conversa, aproxima-se um serviçal e comunica ao dono da casa:

 

- Doutor, o rapaz do acidente está aí com um policial.

 

Quintino, que fora surpreendido no gabinete de trabalho com um tiro de raspão, que, por pouco, não lhe atingiu a cabeça, estava indignado com o servidor que inadvertidamente fizera o disparo.

 

 - Manda-o entrar – ordenou o político.

 

- Doutor – roga o moço preso, em lágrimas -, perdoe o meu erro! Sou pai de dois filhos...

 

Compadeça-se! Não tinha qualquer má intenção...

 

Se o senhor me processar, que será de mim? Sua desculpa me livrará! Prometo não mais brincar com armas de fogo! Mudarei de bairro, não incomodarei o senhor...

 

O notável político, cioso da própria tranquilidade, respondeu:

 

 - De modo algum. Mesmo que o seu ato tenha sido de mera imprudência, não ficará sem punição.

 

Percebendo que Bezerra se sentia mal, vendo-o assim encolerizado, considerou, à guisa de resposta indireta:

 

- Bezerra, eu não perdôo, definitivamente não perdôo...

 

Chamado nominalmente à questão, o amigo exclamou desapontado:

 

- Ah! você não perdoa!

 

Sentindo-se intimamente desaprovado, Quintino falou, irritado:

 

 - Não perdôo erro. E você acha que estou fora do meu direito?

 

O Dr. Bezerra cruzou os braços com humildade e respondeu:

 

- Meu amigo, você tem plenamente o direito de não perdoar, contanto que você não erre...

 

A observação penetrou Quintino como um raio.  

 

O grande político tomou um lenço, enxugou o suor que lhe caía em bagas, tornou à cor natural, e, após refletir alguns momentos, disse ao policial:

 

- Solte o homem. O caso está liquidado.

 

E para o moço que mostrava profundo agradecimento:

 

- Volte ao serviço hoje mesmo, e ajude na copa.

 

Em seguida, lançou inteligente olhar para Bezerra, e continuou a conversação no ponto em que haviam ficado.

 

Hilário Silva

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

 

Da Maledicência

 

A Meada

 Irmão X

 

- A conversação entre as duas jovens senhoras se desenvolvia no ônibus.

- Você não pode imaginar o meu amor por ele...

- Não posso concordar com você.

 - Decerto que não me entende.

 - Mas, Dulce, você chega a querer o Dionísio, tanto quanto ao marido?

 - Não tanto, mas não consigo passar sem os dois.

 - Meu Deus! Isso é coisa de casal sem filhos!...

- É possível...

- Você não acha isso estranho, inadmissível?

 - Acho natural.

- Noto você demasiadamente apegada, não é justo...

 - Sei que você não me compreende...

- Simplesmente não concordo

. - Mas Dionísio...

 - Isso é uma psicose...

Dona Dulce e a amiga, no entanto, ignoravam que Dona Lequinha, vizinha de ambas, sentara-se perto e estava de ouvido atento, sem perder palavra.

 - De parada em parada. Cada uma volveu ao lar suburbano, mas Dona Lequinha, ao chegar em casa, começou a fantasiar... Bem que notara Dona Dulce acompanhada por um moço ao tomar o elétrico, aliás, pessoa de cativante presença. Recordava-lhe as palavras derradeiras: “vá tranquila, amanhã telefonarei...”

Cabeça quente, vasculhando novidades no ar, aguardou o esposo, colega de serviço do marido de Dona Dulce, e tão logo à mesa, a sós com ele para o jantar, surgiu novo diálogo:

- Você não imagina o que vi hoje...

- Diga, mulher...

- Dona Dulce, calcule você!... Dona Dulce, que sempre nos pareceu uma santa, está de aventuras...

 - O quê?!...

- Vi com meus olhos...

Um rapagão a seguia mostrando gestos de apaixonado e, por fim, no ônibus, ela própria se confessou a Dona Cecília... Chegou a dizer que não consegue viver sem o marido e sem o outro... Uma calamidade!...

- Ah! Mas isso não fica assim, não! Júlio é meu colega e Júlio vai saber!...

A conversa transitou através de comentários escusos e, no dia imediato, pela manhã, na oficina, o amigo ouve do amigo o desabafo em tom sigiloso:

- Júlio, você me entende... Somos companheiros e não posso enganá-lo... O que vou dizer representa um sacrifício para mim, mas falo para seu bem... Seu nome é limpo demais para ser desrespeitado, como estou vendo... Não posso ficar calado por mais tempo... Sua mulher...

E o esposo escutou a denúncia, longamente cochichada, qual se lhe enterrassem afiada lâmina no peito.

Agradeceu, pálido...

Em seguida, pediu licença ao chefe para ir a casa, alegando um pretexto qualquer.

No fundo, porém, ansiava por um entendimento com a esposa, aconselhá-la, saber o que havia de certo. Deixou o serviço, no rumo do lar e, aí chegando, penetrou a sala, agoniado...

Estacou, de improviso.

A companheira falava, despreocupadamente, ao telefone, no quarto de dormir:

“Ah! Sim!...”, “Não há problema”, “Hoje mesmo”. “Às três horas”... “Meu marido não pode saber...”.

Júlio retrocedeu, à maneira de cão espantado.

Sob enorme excitação, tornou à rua.

Logo após, notificou na oficina que se achava doente e pretendia medicar-se.

Retornou a casa e tentou o almoço, em companhia da mulher que, em vão, procurou fazê-lo sorrir.

Acabrunhado, voltou a perambular pelas vias públicas e, poucos minutos depois das três da tarde, entrou sutilmente no lar...

Aflito, mentalmente descontrolado, entreabriu devagarinho a porta do quarto e viu, agora positivamente aterrado, um rapaz em mangas de camisa, a inclinar-se sobre o seu próprio leito.

De imaginação envenenada, concebeu a pior interpretação... O pobre operário recusou em delírio e, à noite, foi encontrado morto num pequeno galpão dos fundos. Enforcara-se em desespero...

Só então, ao choro de Dona Dulce, o mexerico foi destrinçado.

 Dionísio era apenas o belo gatinho angorá que a desolada senhora criava com estimação imensa; o moço que a seguira até o ônibus era o veterinário, a cujos cuidados profissionais confiara ela o animal doente; o telefonema era baseado na encomenda que Dona Dulce fizera de um colchão de molas, ao gosto moderno, para uma afetuosa surpresa ao marido, e o rapaz que se achava no aposento íntimo do casal era, nem mais nem menos, o empregado da casa de móveis que viera ajustar o colchão referido ao leito de grandes proporções.

A tragédia, porém, estava consumada e Dona Lequinha, diante do suicida exposto à visitação, comentou, baixinho, para a amiga de lado:

 - Que homem precipitado!...

Morrer por uma bobagem! A gente fala certas coisas, só por falar!...

 

Do mal que se pensa e diz,

Cala as notícias que levas.

Conversação infeliz

É pasto à força das trevas.

Lulu Parola

 

Olhar de alguém, quando é bom,

 Além da sombra se apruma,

Vê serviço em qualquer parte,

Não vê mal em parte alguma.

Augusto de Oliveira

 

Não basta que sua boca esteja perfumada. É imprescindível que permaneça incapaz de ferir.

André Luiz

 

Idéias e Ilustrações Francisco Cândido Xavier -

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

 

Da Abnegação

 

O Exemplo Da Fonte

 

 Meimei

 

Um estudante da sabedoria, rogando ao seu instrutor lhe explicasse qual a melhor maneira de livrar-se do mal, foi por ele conduzido a uma fonte que deslizava, calma e cristalina, e, seguindo-lhe o curso, observou:

- Veja o exemplo da fonte, que auxilia a todos, sem perguntar, e que nunca se detém até alcançar a grande comunhão com o oceano. Junto dela crescem as plantas de toda a sorte, e em suas águas dessedentam-se animais de todos os tipos e feitios.

Enquanto caminhavam, um pequeno atirou duas pedras a corrente e as águas as engoliram em silêncio, prosseguindo para diante.

 - Reparou? - disse o mentor amigo - a fonte não se insurgiu contra as pedradas. Recebeu-as com paciência e seguiu trabalhando.

Mais à frente, viram grosso canal de esgoto arremessando detritos no corpo alvo das águas, mas a corrente absorvia o lodo escuro, sem reclamações, e avançava sempre.

 O professor comentou para o aprendiz:

- A fonte não se revolta contra a lama que lhe atiram a face. Recolhe-a sem gritos e transforma-a em benefícios para a terra necessitada de adubo.

 Adiante ainda, notaram que, enquanto andorinhas se banhavam, lépidas, feios sapos penetravam também a corrente e pareciam felizes em alegres mergulhos.

As águas amparavam a todos sem a mínima queixa.

O bondoso mentor indicou o lindo quadro ao discípulo e terminou:

- Assinalemos o exemplo da fonte e aprenderemos a libertar-nos de qualquer cativeiro, porque, em verdade, só aqueles que marcham para diante, com o trabalho que Deus lhes confia, sem se ligarem as sugestões do mal, conseguem vencer dignamente na vida, garantindo, em favor de todos, as alegrias do Bem Eterno.

 

 

Caridade, a lei do bem,

Aqui, além, acolá,

Tanto dá, quanto mais tem,

Tanto mais tem quanto dá.

 

Antônio Sales

 

 

 

Amor é devotamento.

Nem sempre só bem-querer.

Bendito aquele que dá

Sem pensar em receber.

 

Sabino Batista

 

A renúncia será um privilégio para você.

André Luiz

 

Do livro Idéias e Ilustrações, psicografia de Chico Xavier.